A CASA ONDE NASCI
A CASA ONDE NASCI
a casa onde nasci
tem um jeito de domingo
sonolento e vagabundo
num segundo vejo a rua
paralelepípedos brilham os passos
dos passantes estrangeiros de mim
era assim que via o mundo da janelinha da porta
numa visão meio torta pelas voltas e reviravoltas
dos arabescos cinzas da pequena grade
e o óleo de peroba lustra minha entrada
pela amadeirada porta
meu pai ressona entre roncos roucos
interrompidos aos poucos por agudos assobios
minha mãe estica um descanso indolente
prolongado no sofá xadrez meio marrom meio verde
o silêncio limpo de vozes me ascende às fantasias
e de lá vazias as vidas distantes me visitam
minha avó e meu avô
a gata Ludimila
o peludo Ludovico
visitante perdida
por ali fico menos que um segundo
naquele mundo de abajures e ferro de passar
de latidos intrometidos dos cãs da rua
de tesouras e de alfinetes
lembretes em lista de compras na mercearia
na bancada de alvenaria recém pintada
achegada à mesa de pingue pongue
de cortinas de plástico onde nadam peixinhos
sobre a janela do banheiro
de toalhas brancas
protegidas pelas trancas da tramela
na casa onde nasci
tem aquele jeito de domingo
escorregando pelos tacos encerados
corredor afora
cozinha limpa de cheiros e panelas descansadas
vigilante vasinho de flor acordado sobre a mesa
de súbito um brilho se espelha na vidraça
e embaça o rosto de minha mãe
e a calvice do meu pai
e brilha bem devagar sobre meus olhos
cansados de lembrar
Mírian Cerqueira Leite