NUMA VELHA BARCAÇA

Navegando pelo rio de conhecidas águas,

numa velha barcaça, desgastada,

espio as duas margens do rio

e vejo dois homens iguais e diferentes,

cabeça, tronco e membros e dentes,

um deles dentro de sua sala fechada,

o outro numa pescaria de sossego,

os papéis sobre a mesa, de um,

o peixe alçado à tona, quase um atum,

pergunto ao homem do escritório

qual o sentido de empilhar sulfite

servindo ao homem de suspensório,

ele me diz que tem três filhos e patroa,

um carro que bebe muito, hipoteca,

ri de mim, dentro dessa canoa,

acostumou-se a gastar sua vida assim,

doar seu tempo precioso ao patrão,

de vez em quando uma viagem aos confins,

vai levando a vida dentro de um padrão,

me pede licença, tem que trabalhar,

digo a ele, e a alma, e a solidão?,

me diz ele, nem é bom pensar,

pergunto ao pescador o sentido de tudo,

me diz que nem pensa nessa alegoria,

melhor pescar só, ficar mudo,

do que se engasgar com filosofias,

o que tem de ruim a água leva embora,

é só deixar os olhos descerem o rio,

me oferece uma carambola,

vez ou outra o peixe puxa,

se não, dá um cochilozinho,

o ruim de andar descalço

é às vezes um espinho,

aprecio seu silêncio e sua paz,

me leva o rio em corredeira feroz,

aprendi que é melhor ser capaz

de dar linha ao peixe

do que do patrão ser capataz...