UM DIA NA VIDA DE O.G.
AO LÉU
É preciso estar amando
Para não saber quando
Chega o dia e as estrelas se escondem
Atrás das nuvens a espiarem
Quem perdeu a noção de tempo
E condensa tudo no coração...
. . .
É preciso ter encontrado o jeito certo
De andar pelas ruas sem ser notado
Sumir nas esquinas e reaparecer
Num outro lugar qualquer
É preciso estar amando
Para poder viver...
. . .
Servir-se do silêncio sem ser notado
E ver passar as coisas que se movem sem destino
Não ter envelhecido o sentimento
Algo poderoso a mover a alma
Por fora e por dentro...
. . .
Perder o nome e sem nome seguir
Pelas ruas estreitas dos sonhos perdidos
Rir e chorar se tornarem a mesma coisa
E com as folhas deitadas nas calçadas
Fazer um barco e voar sem direção
Até perder os sentidos...
HORA ZERO
Quero encontrar a hora zero
onde todos caminham de chinelo
rumo ao sol deitado detrás da montanha,
as portas abertas e a luz a varrer as casas,
onde cada palavra encontrou seu sentido
recriando vida nos corações perdidos...
. . .
Um segundo antes do tempo parar
te dar um sorriso de um milhão de dentes,
à sua volta a canção de amor cantar,
sempre feliz, sempre contente...
. . .
A beleza, distante dos museus,
a correr entre as crianças do futuro,
refazendo as rugas das filosofias,
e nós, a saltarmos os muros,
plantando sementes do novo dia...
JUNTAR-ME A TI
Olho pela janela e te procuro.
Não sei se o que vejo é só um vulto
que passa apressado, mudo, cabisbaixo,
ou se é tua pessoa que caminha em vão,
de mãos dadas com a velha solidão,
a contar passos como anjos contam estrelas...
. . .
Queria me juntar a ti e cantar palavras,
mirar o lago sereno que nada espera,
rir das coisas passageiras,
despertar o coração e deixá-lo se evadir,
por aí, vê-lo seguir seu caminho, ir...
. . .
Por que foi preciso tanto tempo
para se compreender que nenhuma
pergunta será respondida,
só o sol a se por e a sair,
o dia e a noite,
o ir e vir das marés,
a mão dada e retirada,
algo entre o ter e perder...
. . .
O desejo, na sala, morto de sono,
já nem sei porque as palavras,
nem o que dizem ou deixam de dizer,
só a brisa da tarde a acariciar o rosto,
todos os cofres abertos, fim dos segredos,
e o maior deles sem responder ao chamado,
só o uivo a rodear as árvores silenciosas, quietas...
O GOSTO DE CADA UM
Gostaria de acordar os mortos,
não para que vivessem,
mas para nos ensinar a morrer...
. . .
Morrer as idiotices que cometemos todos os dias,
o abandono do homem na porta do hospital,
o televisor ligado num programa de fazer comida,
a casa fechada e o olhar aborrecido por trás da cortina,
o remédio que faz falta, a falta que faz aliviar a dor.
. . .
Neste exato momento gostaria de parar os relógios.
Para que os homens perdessem a hora de se perderem
em suas horas vãs em seus escritórios e calabouços,
que cantassem em vão, amassem os que são abandonados
pelo amor que tanto pregam em seus versículos deformados.
. . .
Gostaria de reformar o passado.
Suas tábuas carcomidas, que viraram palácios,
suas leis enfermas que aprisionam sonhos em celas infectas,
sua tabuada que sempre diz que um solitário é melhor
que dois solidários.
. . .
Gostaria de traduzir Deus numa linguagem mais simples,
muito além das religiões que mais aprisionam que confortam,
de explicar o inexplicável, que o maior mistério é ser humano,
devolver aos que nada possuem a posse de si mesmos e,
antes que voltassem a morrer, novamente,
vivessem a vida como ela pede e necessita,
de forma justa e honesta para que não
se perdesse uma só gota de suor.
ÓBITUS SINFÔNICUS
De uma altura de dez metros (aproximadamente), a sinfonia pula.
Antes de se esborrachar no cimento que vem acelerado
em sua direção, ela repassa o que ela foi e o que teria sido
se se tornasse o som que viria a seguir;
um espatifamento sonoro em cento e tantos pedaços,
sem quantizações,
um novo e proposital encontro de moléculas selvagens
em nova coreografia.
. . .
O homem, que olha acidentalmente para cima, espera pelo evento.
A vassoura em sua mão sabe que irá varrer
da face da terra o enclausuramento,
colocará em sua lixeira cacos de sextinas
e fragmentos de fusas, almas de fugas alucinadas
durante um período de alma livre e consciência arrebatada.
. . .
Ao longe um homem dentro de um carro
para sua máquina e ouve o silvo
que acompanha o corpo sinfônico,
põe-se a gravar e tem uma grata surpresa
quando a sinfonia toca o chão e produz o som
mais alucinado desde os tempos
de um bebê chorando anunciando
a progressão sistemática da vida.
. . .
Eu, tão velho quanto tão moço, me dispo das partituras
escritas no corpo,
arranco minha pele como uma velha cobra,
nasço com um tom de música
que vai ao longe tocada pelas mãos do vento,
me arrepio com as mordidas
da luz em meu corpo recém-nascente,
entoo a canção sem décimas terceiras,
arrasto meu corpo de cobra pelos vãos da alma humana
e rio, como fazem os rios quando a chuva chega
e chove mansa nas costas, nos seus dorsos.
ONDE CAIR MORTO
Talvez eu queira cair morto sobre o túmulo de Lênin
para justificar as vodkas e os porres e as idéias vermelhas...
Ou cair morto sobre a tumba de Rimbaud
que escravizou a poesia e depois a libertou...
Cair morto sobre a cova rasa de um mendigo comum
o que prova que a morte alcança qualquer um...
Talvez morto queira cair em cima do mármore de um ricaço
feito uma rosa selvagem toda despetalada aos pedaços...
Morto cair queira sobre as mil palavras ou asneiras
de quem criou a fala redundante da filosofia rasteira...
Cair queira morto sobre a semiótica pedra ume concreta
esfacelada pela língua na carótida da palavra sem conversa...
Talvez morto tombar numa passeata na avenida central
onde a governança usa unhas de ferro contra qualquer animal...
Cair morto de acordo com as leis imortais da morte
onde nenhum apostador venceu-a e nem para isso teve sorte...
Morto da silva e sem nenhum comentário na coluna de óbitos
vivendo no anonimato da morte que é um dos principais tópicos...
Enfim morto caído e definitivamente sem a redenção espiritual
viajar em outra vida sem corpo e alma no espaço sideral...
PARAFUSO INFINITO
A poesia redundante é redonda.
Caminha sem deixar sombra,
nem um viés de vislumbre de corpo ensolarado,
redundantemente é reduto de parafuso infinito,
a poesia redundante redonda é coisa de veado
que grita na floresta seu berro redondo em grito
de animal que vive às custas do espírito sagrado.
. . .
A poesia concreta é mais secreta que os aposentos do Papa.
Usa chinelo de cor, macio, espia pela clarabóia a lua desvestida,
a poesia concreta se arma de tijolos e motocicletas despudoradas,
vê-se que se esconde nas fímbrias da imaginação futurista,
serve ao Bispo e faz concessões ao Rei por amar a Rainha
e vive às turras com os guardas da Torre.
Morre de medo de que a entendam e a tornem Pião.
. . .
A poesia mais morre do que vive.
Acusada de nada dar por nada ter do que nada possui,
aparece vez ou outra para se fazer entender sem que haja entendimento
do porque de sua aparição, já que nem é nossa
e nem senhora é de nenhum homem
que se casa para possuir os bens que não possui.
A bem da verdade, a mentira lhe cai como luva,
lhe veste os trajes mais reais,
possui o dom dos macacos a pular aqui ou acolá
à procura de amendoins
ou bananas que lhe dão os senhores e senhoras
vestidos de preto à moda de Poe,
já a vi em aposentos excusos a se entregar e gemer
palavras tão obscenas que até hoje as bibliotecas
lhes reservam dependências furtivas,
sempre nos cantos, longe da mesmice.
QUE BICHO TE MORDEU?
Você pensa que eu dirijo o carro. Não.
O carro é que me dirige. Sou um automóvel.
Um móvel de colocar bandeja e copos vazios.
Um tanque de gasolina no lugar do coração.
Sou cheio de fios. Obsoletos. Ou não.
Sou o que o espelho chama de outra imagem.
O passageiro que passa o tempo na mesma viagem.
Estou conectado ao enviado à Marte. Sou arte. Desastre.
Venho de uma linhagem de carne de pastel. De vento.
Sou o que chamam, no laboratório, experimento.
Usam e abusam como se eu fosse mala de viagem.
Carregam garrafas tóxicas ou cargas de heroína.
Às vezes estou travestido, num bordel da Espanha,
de menino ou menina. Sou pau pra toda obra.
Origami. Dobradura. Tenho espaço de sobra.
Você pensa que eu escrevo poesia. Engano.
Tenho planos de viver no ócio. Vida vazia.
Roubo palavras que não vivem em público.
Atuo nos bastidores onde moram as verdadeiras dores.
Pareço um cão de dono relaxado. Como qualquer coisa.
Você pensa que amo a vida que levo. Mentira.
Sou sempre o outro que nunca foi eu.
Sempre me pergunto: que bicho te mordeu?
SONHOS
Sonho ser um mosquito.
De nome Freud. Ou Kafka. Ou Mallarmé.
Não importa.
Voar com uma retorta debaixo da asa,
ir até a sua casa e sondar seu sonho,
entrar em seu castelo e destruir seu verso
doente e faminto.
. . .
Posso ser outra coisa. Um sonho.
De nome Nietzsche. Buda. Frida.
Te enviar a bíblia que vai além do bem e do mal,
te encostar na árvore te dizer – esqueça,
desenhar teu rosto e te chamar de Madonna.
. . .
Sonho ser um coletor de impostos.
Poe. Ezra. Joyce.
Te cobrar as palavras que escondeu debaixo da cama.
Te emparedar, destruir os relógios chineses, a língua.
Em apenas um dia te deitar na relva e te ensinar
a escrever poesia como fazem os lagartos.
TRADUÇÃO
Traduza: vento
Cabe à folha decidir se suave ou em movimento
caindo ao chão ou
à espera da mão que a levantará até o céu
sem que ela deseje a morte...
Traduza: poesia
Cabe ao incabível ver o divórcio entre estrutura e pensamento
posto que o vão entre o olhar e a fresta é
menor ou maior que o que há entre direção e tempo...
Traduza: vago
Cabe ao indizível estabelecer as leis de formas e reparações
já que qualquer aparato de conhecimento sobre arquitetura
e voz só trará discordância entre a folha
que cai e poema estático...
Traduza: órbita
Cabe ao pio da palavra pousada no ninho ver a altura da água
ou a menor possibilidade de ocorrência de versos livres
entre seres que computam a loucura como demência...
Traduza: Ter
Cabe ao impossível uma tradução qualquer em sentido disposto
às fileiras de uma a dez e que possa ser contadas por um ser
que desvia o olhar quando o feixe de luz de concentra...
NOITE
Eu sempre soube que virias, noturna,
a bater na porta, suavemente,
eu, a deixá-la entrar,
ambos a sorrir e caminhar até a sala...
. . .
Te oferecer o vinho à tua espera,
a música suave numa carícia de apreço,
sem inquietude, sem medo...
. . .
Eu, a tirar a roupa da língua,
a te contar os mais íntimos segredos,
a me escutares, quieta, doce hóspede,
ambos, cúmplices no mesmo desejo...
. . .
Ao se levantares e me estenderes a mão,
eu, docemente a te tocar, ímpio e puro,
apanho o casaco, está frio, me segues,
abro a porta, dou-te passagem,
fecho a porta, dou-te o braço,
seguimos noite adentro,
a noite que não tem fim...