Penumbra
Arrumou as malas antes. Algo lhe dizia que a casa seria demolida, e que o solo seria infértil, e o sol quente, e a chuva agressiva.
Precisava de algum teto. Porque nunca se sabe. A casa pode continuar firme, o solo pode esguichar flores, o sol pode, assim como a chuva, ser um banhar-se na calma, no orgânico, no divino.
Pode. Mas também pode tudo virar-se de repente do avesso.
Nesse limiar entre a luz e a sombra e entre o mar gelado e a areia escaldante vive o homem. E essas próprias manifestações respiram com dois corações: a luz clareia, mas também cega, a sombra limita, mas também embala o sono. O mar refresca a febre. A areia esquenta aquele que sai do mar tremendo.
Vivemos eternamente na penumbra.
'' Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.''
(Álvaro de Campos)