Sozinho
Hoje eu te vi. Você não me viu.
Um pouco antes das quatro da tarde, passando sozinho pela calçada, devagarinho, como sempre, totalmente inconsciente da própria beleza, com um cigarro entre os dedos. Lindo.
Poucas vezes tive o privilégio de ver as pessoas que gosto soltas. Soltas, digo, sem saber que eu estou ali, que alguém as observa. Sozinhas, sem ter que desempenhar qualquer papel ou forçar um sorriso educado.
Sempre fico pensando o que diabos meus amigos fazem quando estão completamente sozinhos, no quarto, ou totalmente alheios no meio do terminal, voltando para casa, cansados, tristes, desesperançosos...
É como ver um cavalo selvagem, assim, aleatoriamente, o cavalo lá longe, se julgando no meio do nada e sozinho, correndo, fazendo justamente o que quer fazer: matando o tempo, matando a fome...
Ver alguém que me também me vê é transformar dois cavalos selvagens em cavalos acoplados a carroças, domésticos. Temos um papel a desempenhar. Estamos sendo vigiados, julgados. Se ficarmos justamente querendo matar qualquer vontade, podemos ser chicoteados.
Embora tenha sido um segundo, você passando, quieto, eu no carro, o carro indo, não sabendo se descia gritando seu nome ou simplesmente calava a boca, foi lindo te ver sendo cavalo selvagem, sozinho na calçada, fazendo qualquer coisa que não seja da minha conta e o que não tem nada a ver comigo, na mais pura sensação de estar livre e não provocando nada em ninguém.
Não estava. Estava provocando em mim um sentimento de puro fascínio, como se eu nunca tivesse visto algo parecido...
BALADA DA MOÇA DO MIRAMAR - (Vinicius de Moraes)
Silêncio da madrugada
No Edifício Miramar...
Sentada em frente à janela
Nua, morta, deslumbrada
Uma moça mira o mar.
Ninguém sabe quem é ela
Nem ninguém há de saber
Deixou a porta trancada
Faz bem uns dois cinco dias
Já começa a apodrecer
Seus ambos joelhos de âmbar
Furam-lhe o branco da pele
E a grande flor do seu corpo
Destila um fétido mel.
Mantém-se extática em face
Da aurora em elaboração
Embora formigas pretas
Que lhe entram pelos ouvidos
Se escapem por umas gretas
Do lado do coração.
Em volta é segredo: e móveis
Imóveis na solidão...
Mas apesar da necrose
Que lhe corrói o nariz
A moça está tão sem pose
Numa ilusão tão serena
Que, certo, morreu feliz.
A vida que está na morte
Os dedos já lhe comeu
Só lhe resta um aro de ouro
Que a morte em vida lhe deu
Mas seu cabelo de ouro
Rebrilha com tanta luz
Que a sua caveira é bela
E belo é seu ventre louro
E seus pelinhos azuis.
De noite é a lua quem ama
A moça do Miramar
Enquanto o mar tece a trama
Desse conúbio lunar
Depois é o sol violento
O sol batido de vento
Que vem com furor violeta
A moça violentar.
Muitos dias se passaram
Muitos dias passarão
À noite segue-se o dia
E assim os dias se vão
E enquanto os dias se passam
Trazendo a putrefação
À noite coisas se passam...
A moça e a lua se enlaçam
Ambas mortas de paixão.
Ah, morte do amor do mundo
Ah, vida feita de dar
Ah, sonhos sempre nascendo
Ah, sonhos sempre a acabar
Ah, flores que estão crescendo
Do fundo da podridão
Ah, vermes, morte vivendo
Nas flores ainda em botão
Ah, sonhos, ah, desesperos
Ah, desespero de amar
Ah, vida sempre morrendo
Ah, moça do Miramar!