OS RETRATOS
Atravesso a rua Xavier de Toledo,
chego ao retrato antigo,
mural exposto no passeio público:
ampliação do centro,
troca de luminárias em 1902.
Suspiro e examino a foto.
Os condutores de bonde inventam cavalos.
Ao comando dos homens,
bengalas pescam a poeira do século XIX.
Todos irão morrer.
Alguns desconfiam,
mas disfarçam.
Um menino de suspensórios ri perto de um poste
e sua felicidade penetra o homem de terno branco
postado perto da rua Direita.
Retiro-me assustado e olho o século XXI.
Uma mulher passa,
há manchas em suas costas,
melanomas respondem ao brilho do sol.
Um adolescente corre
e serpentes injetam corantes
sobre o seu ombro direito.
Volto ao mural antigo.
Acima italianinhos cantam.
Ouço as vozes roucas,
enquanto relógios parados
são vendidos na relojoaria Jacques Netter.
E a camisaria especial no número 58
vê novos clientes testarem paletós.
Quase entro em um café de São Paulo.
Um carro breca,
retorno à praça Ramos de Azevedo.
Ao meu lado um sujeito
não vê a marca de varíola
dançar em seu braço exposto.
Outras cicatrizes sorriem.
Estrias e tatuagens apreciam a cidade.
O mural é mais absorvente.
Em outra foto identifico os lugares.
Teatro Municipal, viaduto do chá, o prédio da Ligth,
que espalhará interruptores pelo século XX.
Respiro fundo e sobrevoo o presente.
Um grupo de cabelos deixam medusas nas Grandes Galerias.
Sim, os interruptores têm alguma culpa.
Saio do retrato.
Caminho rumo a banca de jornais
da rua Libero Badaró
e vejo aquele avesso escorrendo.
“ Morte em bar da Vila Madalena”.
Examino o homicídio impresso.
O defunto virou os olhos
e o sangue virou jornal.
Toda a banca está em manchete
E o jornaleiro ainda vende chocolates.
Despedaço-me diante da cena,
mas me consolo com a mulher ao meu lado.
Sua boca enojada,
cospe o mau gosto fotográfico.
Do livro: "A CIDADE POSSÍVEL"
E-mail do autor: phcfontenelle@gmail.com