Ladeira

Padeço das dores de tudo

Das cores que inundam a tela dos meus dias

E da ausência delas

Padeço dos amores intensos

E dos estragos que a falta de amor causa

Do sentimento de não pertencimento

E também quando enxergo o pior de mim no outro

Não há beleza em tudo o que eu vejo

E é preciso amar também o que é feio

Nossa grandeza me assusta

Pois me faz perceber que sobre nada temos controle

Nos degladiamos em uma arena fétida

E nos alimentamos do nosso próprio sangue

E dos restos de outros corpos

E da carniça e de esqueletos de outros tempos

Adorando tudo que é passado

Que não podemos tocar nem sentir

Nos guiando por estrelas mortas

Em um firmamento distante

Padeço das dúvidas que recriamos

Das respostas que ignoramos

Da hipocrisia que nos sustenta

Padeço da realidade mórbida

Dos jantares com fantasmas neutros

Tristes lembranças do que deveria ter sido

Padeço das obrigações

Das consequências

Da saudade do que ainda não veio

Das conquistas que não virão

Da esperança que apunhalei pelas costas

Padeço pelo que esquecemos

Do que abdicamos quando ingressamos nesses corpos

Nesses vasos que fazemos adoecer

Da morte diária, que por ela clamamos a cada conjunto de milésimos de segundos

Como se dosa o suicídio?

Em copos, maços, gramas?

Quanto ódio é necessário até que não haja nada?

Padeço da cura que não procuro

E da mão que não estendo

E das vontades que não sinto

E dos impulsos que respeito

Padeço das ilusões que prego

Do desespero pelos sonhos que partiram

Padeço dos dramas que não escrevo

Das comédias que enceno

Da pena que sinto da criança que um dia fui

Padeço das feridas abertas que faço sangrar

Das permissões que concedi aos que me mutilaram

Pelas flores que enterrei em solo árido

E que reguei com venenos

Quando perece também essa carne da qual estamos impregnados

Alguns órgãos fazem preguiçosamente seu trabalho, feito escravos, vítimas de maus tratos

Quanta sobrevida ainda resta?

Há uma pressa pra chegar não sei onde

E nem sei se quero saber

Padeço de um acúmulo de absurdos

Será que é quando fecho os olhos que realmente durmo?

Talvez estejamos todos podres, bem mortos, esperando que a vida enfim nos beije e que seja o nosso primeiro suspiro

Elen Rodrigues
Enviado por Elen Rodrigues em 14/06/2016
Código do texto: T5667009
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