chuva no deserto
Duas horas da manhã
Reina um silêncio pétreo lá fora
só corrompido
pelo discreto barulho da água caindo
É uma chuva insistente
Que teima em molhar,
Teima lavar incessantemente
tudo lá fora.
E, nos pequenos estalidos da água gotejando
Fico a querer decifrar notas musicais,
sustenidos e bemóis imaginários.
Na pauta musical invisível da natureza,
resta-me apenas ler em silêncio
durante minha insônia
É na insônia que dimensionamos
a tristeza e a infelicidade
E, por ter encontrado você
minha amada poesia,
percorre-me as vezes
uma secreta redenção,
uma secreta satisfação.
Aquela mesma dos monges
no alto dos monastérios
A procurar decifrar línguas mortas,
mistérios escavados em pedra, barro
ou em seres humanos
E que iluminam uma vida inteira
com a lamparina delicada
do saber e da esperança.
Duas horas da manhã, e você
novamente me sorri e me acena
Com sua magia e vigor.
Não consigo nessa insônia ver afinal
de contas a saída,
de onde vou retirar maiores forças,
E, sobreviver a mais um dia de amanhã.
Escorreram as lágrimas da chuva em vão
Porque o manancial de mágoas é infindo
As lástimas arranham as paredes da sala,
arrastam-se por toda a casa,
E na devassidão doméstica
há um silêncio, um soluço e
decepções
decorando bizarramente o ambiente.
Há um homicídio emocional praticado
todos os dias.
Duas horas da manhã
O relógio timidamente me espreita
as horas, há horas...
E, numa vergonha absurda,
passo a escrever,
A sorver o significado de tudo,
E exprimi-lo na forma de poesia,
ou de prosa.
Escrevo cartas que jamais enviarei
Risco versos mundanos a
profanar templos,
a atear fogos as vestes,
a desnudar sensações e libidos
mortos
em corpo ainda vivo.
E, na doçura misteriosa das palavras
Entrego meus momentos,
Esqueço da dor,
da fria chuva lá fora
que molha o jardim intrigante
da babilônia, dos labirintos
solitários sem minotauros.
A chuva vai trazer versos molhados
E úmidos que contaminarão
minha alma do deserto.
Bendita chuva.
Bendita insônia.