deriva

em mar aberto o tempo desaparece

e as nuvens se partem

grito silencioso que precede a tempestade

morte da luz doente tomada pela escuridão

indecente em seu poder e admirada em sua

destruição

em meu pequeno barco sento-me

e à deriva procuro

nos recônditos confusos

de uma mente exausta e desmoronada

as minúcias há muito aprendidas

de determinados nós

não me lembro exatamente o por quê

sei apenas que deve ser feito

as ondas se manifestam e se queixam

frustradas com minha incapacidade

jogam-me de um lado para outro

como incentivo ou troça

tentando fazer-me lembrar

de como elaborar algo duradouro e

eficiente

os ventos balançam meu cabelo e martelam

minhas têmporas com urgência justificada

a madeira suportará a força do que está por vir?

a vela suportará o rugido indignado de um mundo

injustiçado por mim e meus irmãos?

não possuo papel para registrar meus últimos pensamentos

e desejos

a morte se mostra em glória no horizonte

mas no deserto de meu espírito ela habita ignorada

ininteligível

expurgada de significado ou peso

curva-se e conspira com sua companheira

astuta e discreta insanidade

traçam planos questionáveis em violência,

sangue e alienação

enquanto para lá e para cá meu barco permanece

como uma chama que se esqueceu como se apagar

como uma fala que esqueceu seu sentido

como um beijo que esqueceu o alvo de seu afeto

como um poema ausente de mensagem

como um poeta exaurido de palavras

como tempo perdido e despercebido

meus remos estão quebrados há muito

eu não havia percebido

meu barco está partido e se enche d'água

eu não havia percebido

minha vela se rasgou

eu não havia percebido

minha vida nunca existiu

eu não havia percebido

minha alma se foi

eu não havia percebido

o que resta agora não preenche

o vazio deixado pelos ínfimos instantes

de deslumbre pela vida

e as palavras...

as palavras insistem em surgir

como um marinheiro se afogando e tentando

com todas suas forças

sugar o ar para se manter vivo

apenas para morrer sozinho

no infinito mar que o cerca

e o isola de qualquer esperança

de porto ou salvação