bem-te-vi
pousou o bem-te-vi bem no alto da antena
na ponta extremada,
e, de lá deu trinados
e, de lá respondia longe
outro bem-te-vi
a lhe fazer descoberta,
a lhe repartir o infinito
pousou lá bem em frente de minha janela
e, de repente num relâmpago,
toda a sonoridade inundara meu quintal,
meu olhos,
minha alma
fiquei perplexa com o amarelo forte de
seu corpo, de suas penas
fiquei perplexa com o risco perfeito de seus olhos,
a mirar o tempo,
a descobrir alento numa tarde feia e
nublada,
numa tarde qualquer
depois de algum tempo,
quando o outro pássaro enfim silenciou
ele arribou-se,
saiu voando impunemente
flanando,
destribuindo poesia e sonoridade
por todo horizonte,
por quer que voasse
meus panos de prato esquecidos
aguardavam-me tímidos e rejeitados,
minha cozinha entardecia despidamente
por entre ladrilhos e pisos
e, no coral tênue
enxergava a vida cíclica
envolta de cânticos,
imaginava uma tevê poética
a mostrar o desbrochar das flores,
os rouxinós no ninho,
o nascimento e morte da vida
diurna, noturna e vespertina
vida em toda parte
nos ácaros da poeira
nos microorganismos,
nas bactérias
dentro de meus pulmões
alérgicos e irritados
a vida dos sãos e dos dementes,
meus olhos sôfregos
lacrimejavam lentamente
despreendiam uma saudade estranha
daquele pequeno ser
vivente
cantante
enebriante que ali cantou,
a tornar tão belo o burlesco dia.
vesti os chinelos,
fechei a janela,
fechei os olhos
e, ainda assim
a sonoridade impregnava
todo ambiente
assim como a poesia que contamina
tudo,
hoje é poesia,
amanhã é amor a poesia
e chega-se um dia,
uma hora talvez
em que se percebe
que não mais se pode
viver sem poesia.
Até pra morrer carecemos de poesia,
de alguma poesia
A poesia dos filhotes sobreviventes,
guardada nos cantos da casa que solitários reclamam
lembranças
encharcadas de suores e de sangue
infeccionadas de paixão ou pudor.
A poesia das guerras,
das batalhas repletas
do brilho fino e contundente
das espadas, dos canhões, das bombas.
A poesia mística que traz ao moribundo
a certeza da eternidade
E a sorte de um segundo, num só reles segundo
quando então fez parte definitvamente da poesia
de toda poesia que há no mundo
secretamente,
escondidamente
bem ali em frente
no cantar do bem-te-vi
a nos dizer justamente o óbvio:
bem te vi!
Bem te quis.
Bem poesia.