Só mais um...

Só mais um

Menino nasceu na privada

Cordão lhe apertava a goela

Arroxeava. Morria.

Em meio a papéis usados

Mijo, fezes, baratas

A mulher o encontrou moribundo

Sorte? Sorte seria a morte!

Não era para ter chegado

Não foi quisto, nem bem, nem mal

Abandonado desde o sêmen

Cuspido na perna, na porta, no canto do muro suburbano

Por um azar não pôde ser tirado

Nem valeu pra ser partido pelo ferro,

Pela pastilha, pelo líquido.

Nada o matava. Vampiro maldito!

Mas as tentativas derrotaram seus membros

Pernas deformadas, coxo!

Olhos cegos!

Veio morrer um pouco por dia

É a melhor morte: Saboreada.

Na mendicância, no anonimato.

Seguia, seguia...

Estúpida noite, gelava suas perninhas abandonadas, nem uma viv'alma lhe cobria.

Um pão na lata de lixo

Banquete podre. Servia!

Um gole de esgoto.

Uma facada era tudo o que queria.

"- Nem pra morrer eu sirvo, maldita sorte! Maldita morte! Que fiz? Que fiz?"

Nem uma puta lhe fazia caridade.

Era invisível como tudo o que não via.

Seus olhos enlameados,

Choraram leite materno,

Pingando fel até no inferno.

Ouviu falar de um tal Jesus Cristo

Que curava, perdoava e enriquecia.

Tateando paredes chegou ao tal templo.

Gritavam. Enlouqueciam.

O capeta se contorcia em algum lugar,

Uns berravam e aplaudiam,

Mas sem dinheiro nada seria possível.

Que dinheiro eu tenho? Piada de Deus?

"- Carrasco! Pra que me dar falsas esperanças?"

Evadiu dali com a renovada falta de fé de sempre.

Nada novo na vida. Nem vida tinha.

Era tão desgraçado que nem conseguia morrer.

Nem de fome, nem de doença.

Nem de solidão.

Os dentes pulavam da sua boca apodrecida,

Suas mãos trêmulas encontravam no lixo de tudo um pouco,

Até o alento do álcool

Lixo rico.

Viveu feito animal. Apagado pela distância humana, regida pelos status e condições.

Não se ressentiu de nada,

Ninguém lhe ofendeu, nem amou.

Ninguém partiu seu coração.

Ninguém o viu passando.

Ninguém. Ninguém se importou.

Sua cegueira não viu ninguém.

A cegueira humana não o enxergou.

Numa madrugada misericordiosa

Deus mandou o frio salvador.

Partiu congelado embaixo da ponte.

Duro. Esquecido. Silencioso.

No noticiário ficou importante

Mendigo cego e coxo ganhou fama e até um nome,

Homenagem póstuma e manifestação.

Ganhou faixa, flores embaixo da ponte,

Ganhou tudo o que nunca teve.

Até compaixão.

Cyntia Pinheiro
Enviado por Cyntia Pinheiro em 04/03/2022
Código do texto: T7465121
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