Sossusvlei

retornaram os sonhos arenosos

dunas instáveis aos zéfiros

faço da carne areia

o inverso de Adão

parte dos desertos do Namibe

esmagada às patas dos antílopes

a receber carícias das serpentes

às vezes ponho-me a ouvir

dispersa sobre a rocha

a desolação da cotovia

que pressente o sol se pôr

habita os passeios de Deus

nestes ventos mornos

imagino sentir-Lhe os pés

entre um desfazer-me e outro

na proximidade da costa

num desses, encontrei ciência

dentre uma forte chuva

era Deus rindo-se da Welwitschia

que Lhe sorriu entre as cabeleiras

era assim, a ordem natural

das coisas que se faziam existir

sem precisar das metafísicas

de perder-se num deserto com propósitos

pois os propósitos já estavam

como por si mesmos

embutidos nas vísceras e sementes

cessada a chuva, o abismo do céu -

todo anjos em roupas azuis

e misturados nas vivas dunas

em súbita vergonha, reuni-me em carne

pois sendo eu quem sabe Lhe arrancaria

os risos do relâmpago e da gnetófita

risos de Pai satisfeito, o filho bonito

porém, em carne, ossos e cabelos

os humanos olhos nada mais viram

que as dunas cegantes

do finito deserto

era isto, era isto ser humano

sentei-me à rocha

toda a consciência de Deus

nas coisas todas, todas elas

e a pequenez de não vê-Lo

por ter-se afastado da ordem

e não ser criatura enquanto carne

chorei abundante

tal qual a tempestade que se fora

e sob as roupagens celestes

do céu de abismo e calor e tormento

ouvi o canto da cotovia

que decerto ria-se à presença Dele.

Zéfiro Alves
Enviado por Zéfiro Alves em 14/11/2019
Código do texto: T6794614
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