Somando o nulo

Queria ficar

diante do mar

sem ter

na mente

pensamento algum,

ideia alguma,

lógica

nenhuma:

ficar apenas

diante do mar

a observar

o intocável horizonte

e sentir a quentura

terrena

na sola

dos meus pés

despidos

de sapatos

e no meu corpo

sem vestimentas

nem formulários

Queria ficar

diante do mar

como uma gaivota

em repouso

como a neve

na Rússia

que está lá

individualmente

coletiva no clima

e no meio

do povo

Queria por um dia

abdicar do raciocínio

humano

que me dói tanto

quando tenho

o conhecimento

das brutalidades

cotidianas

semanais

mensais

anuais

seculares:

ser em suma

uma coisa que existe

e que respira

sem a eletricidade

negativa

que transita

nos neurônios:

em suma:

esta vertigem de pensar

e se dividir

como uma doença

na carne

e na epiderme

que não tem cura

em vida

Que saudades sinto eu

do silêncio

e da calmaria das águas

não derivadas

das lágrimas

do luto de quem

lutara

no outrora

distante:

são tantos os gritos

são tantos os gritos

Queria ficar

diante do mar

e distante do ciclo de vazio

que assola o indivíduo

após alcançar

a madureza

e ver que os encantos

se destroem

na aurora

que nunca

se alegrará:

em suma:

galhos secos

e a fobia do sexo

gravam emoções

num idioma

que há muito esqueci

nas noites clandestinas

sob o fogo do

apodrecimento

que atravessa as memórias

e as perde

para sempre

como um espelho

que reflete a tarde

sem me incluir

na história

do mundo

Queria ficar

diante do mar:

tornar-me frágil

para baixar-me

a nível de um átomo

na imensa escuridão

tênue

entre o nascimento

e a morte das flores

e das conchas

sem habitantes:

uma casa sem gente,

uma quitanda sem gente,

uma biblioteca sem gente,

um mundo sem gente:

uma certa magia

que se acaba,

que se apaga

Queria ficar

diante do mar,

mas o mar me rejeita

por eu ter nascido

em terra,

ainda que o meu corpo

seja um templo infértil

abaixo

das estrelas:

minha revolta

minha angústia

meu afeto,

ampla indiferença:

há trevas no dia,

há inchaço nos dedos

que cavam

um buraco

para fora

de Alcatraz:

há tanta coisa a me rodear

neste momento

e eu

nada queria,

exceto ficar

diante do mar:

num marulho

que aqueceria

e que restauraria

a vontade

de sorrir:

mas o mar

não me quer:

e o mesmo

é apenas um retrato

paralisado

na parede

de uma sala

que ecoa

os meus passos

quando a solidão

explode