Divago em Introspecto
O relógio não bate
o tempo não existe
porque esse instante
nunca aconteceu.
Estou preso no imediato
e sinto uma cólera profunda
corroendo meu fígado
mas já não há fígado
para corroer.
Cada passo é o que me
arrasta para o fundo do céu
onde os desfigurados
se escondem.
É aqui que meus
pensamentos se retraem
numa passividade
ao mundano.
Nem mesmo as futilidades
fazem sentido quando
o teu pulso diminui
e a decadência bate na porta.
E apesar de não querer
você a deixa entrar
e ela se senta como se
já conhecesse a casa.
Sutilmente peço para ela
não quebrar a taça de vidro
onde exponho meu órgão vital
e sorridente ela me responde
que não precisarei mais dele.
A porta se fecha
estou preso
não tenho pés pra correr
não tenho purgatório pra fugir.
Tudo escurece e fico
zonzo com o perfume dela
que arde em minhas narinas
abalando meus ossos.
Quero desistir mas
ela não deixa
eu jamais poderia
me safar tão facilmente.
Vou afundando
caindo
perdendo o que fui
e o que jamais teria sido.
Sou abraçado tão
fortemente pelos braços
da solidão e já
me sinto em casa
Porque não há outro lugar
no mundo pra mim
a não ser em mim mesmo.
E assim a encaro
tenho pupilas dilatadas
deliro em prazer
por sentir sua presença.
Eu me sinto nu diante dela
exposto e deformado
com todas as qualidades
que nunca tive.
E as frustrações
que aliviam minhas dores
de cabeça cada vez
mais frequentes.
Então estou mergulhado
num líquido preto
é o preto mais fosco
e gasto e triste.
Sinto ele
posso tocá-lo beijá-lo
e assim o faço porque não
controlo mais minhas ações.
Sou conduzido guiado
utilizado feito de objeto
por um ser que não vejo
mas que sinto estar ali.
A cada gole
minha cabeça
gira e roda e pesa
já não tenho corpo.
Sou apenas um nada
dentro de um vazio
que é mais completo
do que eu.
A dor já não mais existe
já não sei mais
o que é sentir dor.
Por isso apenas fico em
êxtase enquanto
me desintegro por inteiro
pedaço por pedaço
um atrás do outro.
Ninguém poderia me colocar
de volta porque o eu
desaparece deixa de ser algo
alguém alguma coisa
E passa a não ser
a não viver a não estar
e só assim só não sentindo
eu passo a querer estar vivo
Porque nada mais machuca
ou assusta
e luto pra me conseguir
de volta.
E se eu conseguisse mas
sou filho do incapaz
o insuficiente e nada jamais
seria alcançado por mim.
Então já não penso em voltar a viver
não penso não sei não escrevo
– o meu eu sequer deixa rastro
de que um dia existiu.