o outro
sou o outro que outro imagina
sou provável e tangível
mas sou o outro
a quem apontam na vida
sou o outro dentro de sua retina
cristalina, límpida feito espelho
e revelo você para você mesmo
com medos, inseguranças
defeitos estéticos
olhares desconfiados miram esse outro ser
que não sou eu
que não é essa criatura interna, afável
que tanto conheço
de instintos domados, de palavras convexas
de sentimentos esculpidos no tempo
o que eu vejo de mim, é parte
o que os outros vêem de mim, é parte
haverá arte em unir tais diferentes metades
que não se encaixam
que tripudiam da lógica vulgar
o outro tão temível , tão terrível
que os outros convivem
é um outro abominável
frio, calculista, indiferente
não tem epitélio,
não sente nem fome e nem tristeza
é o outro
encastelado no muro das emoções sofridas
coberto de musgo e de viço
decifrar esse outro que há mim
deslindar essa metafísica intestina
ler papiros antigos,
caçar o tesouro perdido
jogar-se no abismo do desconhecido
pois o outro é inesperado
é surto cotidiano
a espalhar acenos e tremores
a pintar quadros intruncadíssimos
a tocar as mais belas melodias
para ninguém
a maquiar o olho de cleópatra
sem nenhum marco antônio
o outro é a vaidade genuína
de ser o que se é...
sem medo de não ser amada,
sem medo de não ser aceita
sem medo de não haver lugar no mundo
para ser tão jactante
porque ser o outro é tão alheio e presente
é tão recheio e espírito
que tudo isso pode ser apenas loucura
pode ser apenas impressão
ou expressão
mas devo dizer que
você não conhece nem o outro e
nem a mim,
do outro tem apenas a casca
de mim tem apenas as palavras
juntando tudo há um todo irregular e absurdo
paradoxal e antifluxo
que navega em sentido antihorário
das horas de mil séculos,
pois o relógio das almas
é a eternidade.