Dois estranhos
Ele a olhou e viu outra pessoa
Procurou na memória
e estava lá: a verdadeira
Mas que importa ser verdadeira
se não passa de uma ideia?
Encarou, então, o fato:
“Só existe esta mulher, que desconheço”
Ela olhou a si mesma
e viu o tempo de mãos dadas com a tristeza
Envelhecia ao lado de um estranho
O outro, o verdadeiro, era só lembrança
Dormiu no passado
e permitiu que esse, muito diferente,
acordasse em seu lugar
Ele sorriu ao se lembrar dos beijos, das noites,
dos abraços gelados sob a chuva
Esforçou-se para vestir com aquela ideia
a falsa mulher real
Mas o rosto sisudo de agora
não cabia nas vestes alegres de antes
Ela preferiu mergulhar na rotina real
para não se afogar na quimera das lembranças
Era prática: “o homem do passado morreu no passado
O do presente pode ficar aí... tanto faz
Não o conheço mesmo, esse algoz
do homem que amei”
Dois corpos estranhos
sobre uma cama, também estranha,
distante das camas do passado
Entre os dois corpos desolados no leito frio,
um muro invisível
Invisível, porém mais real
que o amor cativo na memória,
dissolvido pela realidade ácida