A vida secreta de Ana
A vida secreta de Ana
Ana era ninguém
Trancafiada em seu lar
Quieto e calmo
Apenas vivia com seu gato
Atravessava as três quadras
Até a esquina, com seus óculos
De sol vermelhos
E suas roupas um tanto gastas
Em sua casa tudo tinha
Lugar certo, mas tudo mudava
Seus hábitos enrijeceram no tempo
E do sofá ao computador sonhava
Tinha sonhos, mas já não os sonhava
E sua insignificância era deliberada
O mundo era feio, sujo e malvado
E quando nele pensava, queria dormir um sono justo e eterno
Ana era feliz com tudo isso
E de chinelos velhos passava a tarde
No caderno, sobre a mesa, que propositalmente
Bagunçara para dar vida a sua obtusa organicidade
Mantinha num canto
Fotografias de quem sequer via
Mas eram deles e afinal
Não podia negar tudo
Inventava suas modas
Sua mente inquieta pedia
Olhava pela janela
E tudo ruía numa imagem desfacelada
As vezes ouvia músicas
Noutra via filmes ou lia poesia
Mas o telefone não tocava
E exasperada pressentia que já não era nada
Ana, entretanto, sabia
Que como ela havia muitos
Pessoas que abdicaram
Para viverem sozinhas e em paz
Mas da solidão não tinha medo
Só não queria a intromissão do outro
Na vida que construíra
Secretamente em seu íntimo
Ana pensava em recomeçar do zero
Esquecendo passado e história
Ficando para si com as cores bonitas
E sublimes de sua memória.