Margens

Admito que tentei me esconder,

fugir a mim mesmo como um condenado,

um torturado de seus sentimentos,

mergulhando num esquecimento voluntário,

apagando os rastros de meus passos,

mas minhas lembranças teimam em voltar à tona,

chegam às margens do meu ser como a água do oceano,

salgam meus pés descalços na areia do tempo,

comovem meus olhos na maresia de cenas vívidas,

impelem minha brevidade de sonhos e esperanças frágeis,

não sei o que fazer para manter-me a salvo de todas essas verdades,

quando vivi todas as mentiras que minha vida pôde conter...

Admito que tentei mudar minha essência,

mascarar minhas ações em novidades farsantes,

um ator dramatizando sua novela pessoal numa arena sem público,

escrevendo roteiros distópicos em um mundo de faz de conta,

chorando minhas dores em sorrisos cínicos encenados,

mas minhas cicatrizes doem forte à cada lua cheia,

as marcas de meus erros brilham como tatuagens prateadas,

estigmas de um sórdido cavaleiro sem honra,

aprisionado no labirinto de sua própria existência inglória,

esperando por uma luz que jamais virá de canto algum,

não sei o que fazer para dar fim a essa melancolia insana,

quando vivi todas as loucuras que meu coração pôde suportar...

Admito que tentei esmurrar as paredes de meu quarto,

quebrando meus punhos em cada tijolo e cimento que encontrei,

fazendo a dor de agora maior que a perda do passado,

escamoteando meus reflexos não controláveis,

aguardando a camisa de força que me entorpecesse o espírito,

mas o diagnóstico de um surto não me tolheu os sentidos,

continuo vagando por este mundo como um andarilho evasivo,

uma árvore seca em tempo de outono vendo suas folhas caírem,

procurando ainda alguma explicação que venha do destino,

ou talvez, tristemente, alguma redenção antes do inverno,

não sei o que fazer para eliminar essas vãs ilusões,

quando vivi todos os delírios que minha mente pôde inventar...