Fictício
Quando olhavas-me vias quem querias,
fez-me teu desejo personificado,
um verso de uma crônica viva,
uma poesia de vários tons,
um rabisco de estética perfeita,
um signo de tuas vontades,
o sorriso que querias quando o céu estava cinzento,
o abraço que precisavas diante das lágrimas,
o alguém que protegia teu caminho das tormentas,
a voz que falava-te ao coração mesmo em silêncio,
o anjo caído em teu terraço num tempo de inverno...
Quando beijavas-me sentias mais do que jamais vivestes,
tomou-me em tua alma como teu duplo,
um amante caliente entre lençois de alva maciez,
um amor para chamar-te de teu em cada gozo,
um corpo para dobrar-te em lascívia em cada sussurro,
uma história não publicada de uma editora fictícia,
o cavaleiro medieval carregando a dama dos montes altos,
o príncipe idílico de um tempo inexistente,
o reflexo no espelho sem sombras ao sol,
o protetor de teus sonhos segurando-te as mãos no abismo...
Quando abres os olhos agora digas-me de que te lembras,
acalmou-te das iras de inverdades por ti mesma construídas?
uma linha mal escrita foi o que fizeste de mim,
um resumo de tuas impressões reprimidas,
uma réplica de uma pintura em um museu trancado,
um restauro de um desesperado interior fragmentado,
o salvador de tua pátria à deriva em um mar bravio,
a ilha a tua espera após um trágico naufrágio,
a rede no fundo do poço ao qual te lançastes,
o limiar de um horizonte das curas necessárias...
Quando segues tua vida sem em mim pensar,
mentes a ti mesma no brio de um falso orgulho,
um culpado para tuas melancolias soturnas,
um traidor de tuas ilusões corrompidas pelo dia,
um açoitador de tua pele nua à luz da lua inquiridora,
um divagador de filosofias jamais escutadas,
o simulacro do que tivestes como posse em prisão domiciliar,
o vulto de quem acorrentaras a teus pés,
o espectro de um homem sem trajetória própria,
o bote no qual te abrigastes quando nada mais tinhas...