Conversa das Madeiras

Ao me deitar a noite,

na companhia de meu cansaço, ouço vários estalos,

às vezes mais altos que o radinho ao lado da cama

que me conduz ao sono (minha cama de casal tem quilômetros).

Desconfio ser o som das madeiras da estante,

do armário, da cômoda.

Sempre no mesmo horário toca “I Have a Dream”, do ABBA e,

há sempre uma percussão adicional de estalos,

eles me apreendem e olho para minha cama

como para o deserto do Saara, infinito.

E divido minha atenção com a música,

a cantora diz acreditar em anjos mas não endosso.

Há uma pausa nos barulhos da casa.

A próxima canção do rádio não é tão bonita

e se perde no volume baixinho...

Mas os pequenos sons da noite se amplificam pela casa vazia

e dançam valsa com a solidão numa festa invisível mas,

que se faz discretamente audível.

Como pode nesta cidade de quatrocentos quilômetros quadrados,

haver um deserto maior dentro do meu quarto?

Me espera a chegada do sono no ritmo dos estalos,

como um brejo de sapos lenhosos e,

como não há ninguém nesta hora que fale minha língua,

vou escutando a conversa das madeiras.

Ricco Salles
Enviado por Ricco Salles em 30/07/2014
Código do texto: T4902089
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