Kishinev: Fragmento de viagem
(Nota do autor: Escrevi os fragmentos deste poema após uma viagem a Chișinău em fins de 2018. Minha incapacidade e falta de interesse em conclui-lo levaram-me a abandoná-lo e reescrevê-lo em prosa sob o título “Nos domínios da Morte-em-Vida” três anos depois. Julguei os fragmentos bons demais para desfazer-me deles, entretanto.)
I
Tendo nos bolsos boa soma de dinheiro,
E estando certa vez deveras entediado,
Quis constatar se era mesmo verdadeiro
O que tanto já me disseram no passado –
Depois de reunir uns pertences, ligeiro,
No primeiro paquete que vi, apressado,
Em meu próprio Grand Tour parti a viajar,
Mais sábio e menos triste almejando voltar.
II
Em meio a meus poucos pertences carregava
Algumas mudas de roupa (o essencial);
Meu exemplar do “Childe Harold” também levava,
Pois pretendia imitá-lo, afinal,
E enquanto no oceano eu sacolejava,
Tal qual Don Juan ameaçava passar mal –
O mais perto que até então me assemelhei
Dos heróis de Byron que tanto admirei.
III
E também não podendo faltar companhia
Para tornar o itinerário agradável,
Pois até ao pobre Yorick acompanharia
O gentil La Fleur, prestativo e afável,
E Sancho Pança ao fim do mundo seguiria
Seu mestre – aquele cavaleiro admirável –,
Trouxe o diabo azul que rege meu pesar;
Scarbô é como gosto de o chamar.
IV
Ora fazendo cabriolas, loucamente,
Gargalhando seu cruel riso amargurado,
Ora criticando o que via pela frente
Sem que por qualquer coisa fosse deslumbrado,
Em sua misantropia era mais contente
Do que eu, a um canto sempre amuado,
Pensando em meu país que me renegara
E que nada ou ninguém de valor lá deixara.
V
Nem pai, nem mãe, nem irmã por mim chorariam –
Se eu morresse talvez até celebrassem,
Já que na frente nunca a me ver tornariam
E de meu ofício não mais se envergonhassem.
Tampouco amigos, que saudades sentiriam,
Deixei que por muito a mim se apegassem,
E a única mulher a quem um dia amei
Não com as mãos, mas com a língua, a matei.
VI
Parto, portanto, sem ter nada a perder,
E só Deus sabe quando haverei de voltar.
No horizonte, infinito a se estender,
O azul do céu se mistura ao do mar –
E este paquete na água a estremecer
Já fez-me duas ou três vezes vomitar.
À minha cabine eu desço, bem zangado;
Pela náusea foi meu prólogo arruinado!
***
[ I ]
II
Ah, Kishinev! “Cidade amaldiçoada”,
Assim chamada por Pushkin tão duramente!
És tu agora minha próxima parada,
Onde hei de exilar-me voluntariamente.
Que sejas, trágica cidade malfadada,
Mais aprazível a mim que a meu precedente –
Já que a olhos enfermos a luz atormenta,
Tua triste decadência muito me contenta.
III
Se a Tristeza houvesse um reino erigido
Onde seus súditos pudesse reunir,
Como capital cá teria escolhido;
Não vi nenhum rosto sequer a me sorrir.
Todos parecem ter um pesar escondido
Dentro de suas almas a os afligir –
Os homens são taciturnos, desconfiados,
E as mulheres são cadáveres descorados.
IV
Como se já educasse seus habitantes
À sina que aguarda a todos pela frente,
A lápides são suas casas semelhantes:
Blocos de pedra, cada um mais decadente
Que o outro, dissuadindo quaisquer visitantes
De encontrarem um anfitrião contente
Dentro de seus muros tortuosos e cinzentos,
Que lhes ofereça pousada e alimentos.
V
Eu próprio no Național me hospedara –
Ou, pelo menos, creio este o nome ser,
Já que a letra L há muito tombara
E o O no letreiro já estava a pender.
Sua aparência não muito me animara,
Mas o que veio em breve a me convencer
Foi o vinho que aos hóspedes era servido;
Só depois em Tiflis melhor o hei bebido.
[ VI – IX ]
X
Tendo os carvalhos como minha companhia,
De um passeio prazenteiro retornei
Pelo Parque Pushkin (tamanha ironia!)
[…]
[ XI ]
XII
Contrastando com o deprimente estado
De tudo aquilo que vira até então,
O monumento a Estêvão Mare preservado
Trouxe-me um fugaz lampejo ao coração.
Tal como eu, apegados a seu passado
Próspero, lidavam com a desilusão
De um futuro que talvez não chegaria
E que suas alegrias não devolveria.
[ XIII – XIV ]
XV
Às margens negras do rio Bâc me sentei –
[…]
Uma lágrima por ti, S…, derramei
[…]
[ XVI ]
SONETO AO RIO BÂC
Ao mais negro destino estavas fadado;
Ainda mais negro que tuas águas estagnadas.
Nos já longínquos tempos dos contos de fadas,
Por lágrimas teu curso foi delineado.
E hoje neste país tão triste situado,
Nesta cidade das mais amaldiçoadas,
Quantas mais lágrimas não foram misturadas
A este teu fardo, naturalmente pesado!
Minhas próprias haverei de acrescentar
Às tuas águas, e que a consolação
Encontremos quando a jornada acabar.
Ó Bâc, da tristeza humana guardião!
Que vivalma jamais venha a profanar
Os segredos ocultos em teu coração!
[ XVII – XX ]
XXI
Então é este o fantástico e deslumbrante
Circo de Kishinev que me cativara
Noutros tempos minha imaginação de infante
E o qual conhecer tanto ambicionara?
Aquele sonho de um passado tão distante
A cruel realidade o arrebatara:
Há vários anos fora o circo abandonado,
E jazia no mais repugnante estado.
XXII
Seu pórtico era encimado outrora
Por dois palhaços esculpidos lindamente,
Cumprimentando a quem passasse a qualquer hora,
Com seus francos sorrisos, amigavelmente.
Não tive ninguém que saudasse-me agora,
Pois o tempo mutilou-os horrivelmente:
Um deles tivera o braço arrancado,
E do outro a cabeça haviam decapitado.
XXIII
Por corredores ricamente decorados
Com mosaicos de exóticas feras passei –
Permaneciam ainda bem preservados.
Contemplando-os, melancólico pensei
Nos risos de moços e velhos, sepultados
Nas fendas daquelas paredes; desejei
Ouvir de cada um deles sua história,
E imaginar tal circo em seus dias de glória.
CANÇÃO
“Desde meus mais verdes dias até então,
Ando em meu colorido traje exagerado,
E com este sorriso em meu rosto pintado
Diligente desempenho minha função.
Como palhaço, levo a sério a profissão;
Se me visses, jamais teria imaginado
Que trago no peito um coração macerado
E não tenho outro amigo fora a solidão!
E por mais que sinta vontade de chorar,
Minha tristeza sou forçado a engolir
E meu artificial sorriso ostentar –
Até minha morte haverei de prosseguir
Buscando ouvir os transeuntes gargalhar
Sem que ninguém em troca faça-me sorrir!”
XXIV
Um som estranho chamou-me a atenção;
Vinha do picadeiro, e para lá segui.
As plangentes notas de um acordeão
Gradualmente fui podendo discernir –
Um cigano, absorto em sua solidão,
Tocava sem que nada o viesse a distrair.
Bastante tempo assim ele permaneceu
Até que de minha intrusão se apercebeu.
XXV
Cumprimentou-me ele muito cortesmente;
Constantin, disse-me, era como se chamava.
Desde que a esposa morrera tragicamente
Naquele circo, sozinho, se exilava
Para tocar seu acordeão, tristemente;
[…]
[ XXVI – XXVIII ]
XXIX
[…]
Apertei-lhe a mão e a ele prometi:
“Um dia haverei de escrever sobre ti!”
XXX
Passei a tarde alegremente conversando
Com meu novo amigo, em pesares meu irmão;
Tomando um saboroso vinho, imaginando
Quando haveria de nos vir consolação.
E enquanto o Sol no horizonte ia declinando,
Tive a certeza de que se meu coração
Fosse uma cidade, seria como aquela;
Ó Kishinev, mesmo em prantos és bela!
[ XXXI ]
SONETO AO CIRCO DE KISHINEV
Em meio a teus grandiosos murais descascados
E magníficas estátuas mutiladas,
Quantas interjeições de espanto, gargalhadas
E sorrisos por eles foram presenciados?
Agora jazem todos eles sepultados
Em cada fenda de tuas paredes rachadas;
Ó oco mausoléu de alegrias roubadas,
Que teus corredores não sejam profanados!
Continue, Kishinev, a perseverar;
Algum dia estas portas vão se reabrir
E tua felicidade haverá de voltar.
E neste dia (que certamente há de vir),
Espero também junto a ti reencontrar
Minha própria habilidade de sorrir!
[?]
Deixei Kishinev em sua melancolia,
Muito mais triste do que havia lá chegado.
[…]
(2018)