O Eu Reticente
Hoje... Ao deitar-me já era madrugada costumeira
E esqueci-me de baixar o estores da janela do meu quarto.
E os primeiros raios de sol da manhã
Chamaram por mim...
De mãos dadas com os passarinhos.
E acordei cântico e luz.
Não é cotidianamente que gosto eu de acordar-me assim.
Mas então senti-me rapidamente bem disposta
E quase feliz sentei-me na cama...
E dirigi-me até a janela,
Onde o tempo passa quase imperceptível
E parece não ser meu.
Como se cavalgasse na brisa fresca...
No balanço das árvores...
À melodia dos passarinhos.
Quatro passos à esquerda
E deparo-me com o espelho do corredor...
Logo à porta do meu quarto.
Fixo-o.
Perpasso-o... Como de costume.
Sinto uma enorme vasca ao ver aquela antiga moça
Sempre indecisa ao pé da escadaria que leva ao cimo
Que culmina sei lá eu onde...
Ou ao cimo de mim mesma,
À minha loucura absolutamente lúcida,
Às dificuldades tantas de ser tão eu.
Dos altos impostos que pago eu por ser eu.
Escancarada-mente eu.
Então ela...
A antiga moça do avesso do espelho
Lá sempre está... Estática e indecisa.
Canso-me, então, de esperá-la... Sempre.
E acabo sempre por perpassar este mesmo espelho
E fazer o caminho de volta.
E fito-me à margem do espelho...
Gosto das suas verdades.
Desfaço-me a minha face em minha retina torpe.
Fito-o.
Alinho sempre os cabelos.
Mas desisto.
Passos lentos levam-me de volta à minha janela.
E o que fazia-me ligeiramente feliz
( a indecisão despreocupada e sem qualquer pressa
Daquela antiga moça ao pé da escada )
Deixei... Do outro lado do espelho.
Alguns passos para trás... No tempo.
E debruço-me eu sobre os tantos pensamentos meus
E o tempo para o lado de fora de mim?
Cavalga nas asas da brisa fresca que passa...
Do outro lado da minha janela.
Quase imperceptível.
E acaricia-me a mesma face que sempre perpassa o espelho
A desalinhar os meus cabelos novamente e sempre.
E os conceitos tantos... Tola eu.
E a zombar de mim...
Mas posso ouvir a melodia doce dos passarinhos... Acalma-me.
E estão sempre a alimentar-me todos os sonhos meus.
Tão tolos quanto eu.
... E a minha face per-passadora de espelhos.
Com sofreguidão... Tateio-me e só.
E sou eu mesma.
Despida dos conceitos todos sobre o mundo.
Despida dos conceitos todos sobre mim mesma.
Límpida... E perdidamente transparente.
Indubitavelmente... Eu.
Ou será que engana-me o espelho?
Que despe-me assim...
Onde perco-me...
E onde encontro-me com as minhas reticências todas...
As de já nem mais saber quem eu sou.
Karla Mello
27 de Julho de 2014