Eu não eu
Hoje eu não queria ser eu
Acordei sentindo falta
De um corpo que não fui
De um amor que não tive
De crenças que não cultuei
Senti talvez os cansaços nos ombros
O peso de minhas pálpebras
O gosto de uma derrota iminente
A morte certa batendo na porta
Nunca fui pessimista, realista
Sempre sou aquele que vive acordado
Olhos arregalados, mundo cruel, estigmatizado
E porque eu não vim em outro corpo?
Um outro que mereça meus pecados
E minhas sinas, corpo são, mente insana
Eu hoje não acordei aqui
Estranhei esses cílios empoeirados
A cera de meus ouvidos pareciam
Mundanas, e minhas asas onde estavam?
Estou com pés, e o sentimento de mundo
E onde estão minhas amizades, meus olhos
Foi você quem levou, devolva-me
Faça o favor de me deixar a par de tudo
De novo, imploro, devolve meu corpo
Esses pelos nunca foram meus, há calor
Estou suado, transpiro indagações
Dói minha cabeça, choram meus olhos
Onde estão meus olhos, olhares?
Insisto em sair daqui, se o destino é um só
Deixe-me a escolha mundana de ser
Vaca profana, meus cornos e córneas
Bezerro desmamado, alma deslocada
Não faço questão de alforrias
Serei ainda teu servo
Mas muda esse rosto que não é meu
Devolve minhas pregas
E junto com elas minhas rugas, tão tuas
E meus cabelos brancos, contrastes de mim
Correm entre a neve os lobos, juventude de mim
Lampejam douradas alianças, antigos eus
Olhos verdes, boca fina, esse não sou eu
Gabriel Amorim 16/03/2014