HUMILDADE E ALTIVEZ DE DESERTOS
PUBLICAÇÃO NA MANHÃ DE 18 DE JULHO DE 2013
Também no Áudio.
Deixai-me, ainda, dizer nesta manhã,
desde o ventre da incomensurável cidade a devorar os filhos
na secura de edifício sem nome
sem biografia
sem história
desde o mais fundo dos ermos
desde a raiz das árvores secas de inverno
árvores secas em secas alamedas de inverno
desde o fundo da alma em inverno
alma sem sonhos nem esperanças quaisquer de outros ciclos
deixai-me dizer
mais do que dizer, deixai-me sentir, ainda,
algo, ainda, da humildade e da altivez dos desertos .
Não de um deserto real
de deserto inventado por sonho
que no universo de mundos pós-tudo
de almas pós-tudo
de tempos pós-tudo
não mais sequer desertos, senão em sonhos inventados,
mas o meu, já que nem mais sonhos inventados consigo,
será deserto meramente pensado
pensado
areal sem fim e sem começos
sem termos de acordo
sem oásis
ou melhor
- para quebrar a onipotência das areias infindáveis -
com alguns pequenos e outros grandes oásis de pedras
oásis de pedras reluzentes
de altíssima chama
de duríssimos arco-íris
como nenhuns outros
pedras como nenhumas outras
onde os pés descansem, fundo,
de todos os repousos
onde o sangue a jorrar
complete o cenário.
Altivos e humildes e sangrentos pés
deserto altivo, orgulhoso do seu areal sem fim
e de seus oásis de arco-íris pontiagudos
e de pedras redondamente a espraiar outros tesouros de ninguém
deserto a ofertar-se
a este pensamento quase delírio no início da tarde
deserto-oráculo
amplo e sem muros como um deus criado
amplo e sem muros.
Um deus criado no tempo deste poema, também ampla voz de nadas.
Um deus criado neste instante.
Deserto sem tendas
beduínos
camelos
sem o que quer que seja que configure em algum lugar para alguém deserto plausível
deserto anterior a si mesmo
como se não fora
deserto projetado para alívio
só no exato tempo e espaço desta escrita
que é mesmo uma coisa nenhuma.
Deserto altivo
deserto humilde
vento a espalhar areias e pedras pelo mundo e por não mundos
ofuscante céu de quase meio-dia a cegar as palavras
céu de obscuro verão vindo de teu hemisfério, deserto pensado,
para cegar também cada um dos silêncios.
Deserto altivo e humilde
janelas de prédios que olham este instante no inverno
sem ver nada e ninguém
árvores de hirtos galhos
cruzes cegas na ainda manhã
cegas penitentes imóveis
cegas imóveis penitentes erguidas diante do seu deus.
Diante do seu deus.
Poema escrito em 17 de julho de 2013.