O invisível - John

Foi no leito de um hospital que John – o invisível percebeu que suas perspectivas imutáveis sobre a existência humana haviam sido adulteradas pelos equívocos das falsas convicções. Diante da morte e da complexidade do universo, viu-se ele, olhando pela janela do quarto da enfermaria, enquanto lia poesia para um paciente, que enxergava apenas com a alma, pois a visão ocular há muito havia perdido.

John – o invisível, sempre com seu caderno de anotações entre os dedos surrados pela vida, ainda podia fazer as mais belas descrições a respeito das paixões e das injustiças humanas. Era um ávido observador. Sorte dos seus alunos de filosofia, curso ao qual se dedicou pela vida toda, entregando uma mistura de amor e sabedoria, fazia com que seus discípulos criassem um vínculo perpétuo em relação ao conhecimento.

Erudito, desprovido da arrogância típica dos doutores, transitava entre os umbrais e os paraísos terrenos, da mesma forma que atendia ricos e pobres, negros e brancos, pois para ele, a diferença (se é que existe) não está na dimensão social e econômica, todavia, nas diferentes formas de amar e ser amado; portanto, havemos de compreendê-lo melhor.

Qual a lógica da vida, inúmeras vezes, perguntou a si mesmo. O que guardaremos e o que deixaremos no dia da partida? Lembranças. As boas irão conosco e as más, deixaremos em algum canto sombrio de nossos lares, para que sejam sugadas no vácuo da morte. Se a razão trouxe luz necessária para suportar os atos de barbárie humana, noutro sentido, a falta de uma perspectiva antimaterialista deixou-nos cegos da ambivalência do processo de luta e fuga que compõe nossa vida.

Agora, já em sua casa, recuperado do susto de uma crise de falta de insulina, John – o invisível se deparava com a solidão – uma espécie de asfixia – que destrói a vida dos grandes pensadores. Havia sido preciso escolher a companhia da mesma para que fosse possível elaborar todo o vasto material teórico de suas pesquisas antropológicas. Dessa forma, ficaram pelo caminho amigos e paixões, que talvez nunca lhe compreendessem, embora seja o preço que se pague pela obstinação.

O fenômeno da ausência também conhecido como solidão materializa-se na forma de uma criatura que passa a conviver com o isolado, causando, por certas vezes, delírios e alucinações. Então se estabelece um diálogo, visto pela platéia como um monólogo, porém, pela condição alterada da consciência, o ser que está diante de si é vivo, tem formas e cheiro, às vezes, até gosto. Uma mistura de abandono com o gosto amargo de uma dose de tequila!

Àqueles que trocam a companhia dos vivos pela penosa e árdua convivência com letras mortas, resta-lhes apenas o calor dos sentidos, ainda que estejam enferrujados, contudo, podem restabelecer a condição ‘sine qua non’ na origem das espécies.

O invisível – John, amigo do saber, amante das letras mortas, com elas haveria de morrer, para que o sentido da vida que tanto buscou nas imagens sombrias do futuro, pudesse agora, esclarecer-lhe os mistérios do universo. Tal como a relatividade propõe leis específicas para a geometria dos corpos celestes, John aplicou a sua vida, uma porção delas, no intuito de alcançar à clarividência, mesmo que antes, precisasse andar pela escuridão do destino, sendo apenas um menino, que lia dicionários e traduzia livros, sem a pretensão de o mundo transformar, mas que se transformaria com o mesmo, muitas e muitas vezes, e todas que fossem preciso, na pífia condição de humano – demasiado humano.

David dos Santos
Enviado por David dos Santos em 22/02/2013
Reeditado em 22/02/2013
Código do texto: T4153946
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