Os últimos dias de solidão
Há cem anos eu escrevia poesias
Hoje construo barcos de papel
A diferença está presa no contexto
Que o destino usa contra nós
Há cem anos eu usava drogas
Agora posso correr e permanecer de pé
Naquela época eu beijava seios de mulheres
(espetacularmente sedutoras)
Ainda tenho o gosto de cada um na memória.
Há cem anos eu ouvia Black Sabbath
Hoje leio Vinícius de Moraes
Digamos que o tesão seja outro!
Então me vi no jardim diante da roseira
Regando cada flor como se fosse pela última vez
O sol da tarde gerava um calor sufocante
Que embora necessário, devia atrair maus fluídos
Sei que nos últimos tempos
Decidi encontrar outro caminho
Percorri algumas estradas e atravessei pontes
Intuindo, admitindo para mim mesmo
Que a história – dessa vez – haveria de ser outra.
Há cem anos eu comia churrasco
E assistia futebol aos domingos pela TV
Aos poucos cansei, mudei, entende?
Descobri outros sabores, outros valores
Viajei com tribos indígenas
Morei alguns anos em longínquas florestas
Casei com uma linda inglesa
Mas eu gostava mesmo das putas
Aquelas que nos fazem arder e sempre desejar
Não sair do vai e vem de suas coxas frenéticas
Pois bem, eu podia ter mudado, mas não completamente.
Há cem anos eu nascia, já carregando um fardo,
Desde então me aterrorizou o fato de ser um jovem
Cuja preocupação maior sempre foi para com os outros.
Quando me contaram que Deus havia morrido
Eu não pude acreditar, mas sobrevivi...
De lá pra cá, eu desejei conhecer o universo
Os pontos incríveis que se justapõem ao anoitecer
E vendo as estrelas, novamente voltava a acreditar
Que o destino projeta em nós, amor e azar.
Há cem anos eu divagava sozinho, comigo e com os outros, aparecia no cinema só para agradar a namoradinha que havia transado na semana anterior, orava acreditando na recompensa que nunca viria, comia mel pela manhã respeitando os costumes de minha avó, mesmo achando bobagem aquele ritual, dava esmolas aos mendigos, levava flores aos finados... Esse ‘eu’ não existe mais. Sucumbiu no mundo opressor, nas palavras duras das pessoas, na depressão genética. Adoeceu e teve febre por setenta e duas noites, parecendo um refugiado de guerra, que tinha medalhas no peito, mas, cuja alma fugira pelos desertos, pelos oceanos, pelos olhos de um amor perdido.