Capítulo 46 - Parte II - Página 11
E ela tem o cheiro do mar revolto das ondas tantas do seu pesar...
E muito poucos a conhecem e, por vezes, ela perde-se em si.
Dizem que ela é de muito sorrir e muito falar...
Mas sei eu que chora ela por dentro - inverno quase sempre e pouco sol.
Mas sempre muita luz em alguns quartos de si que ela permite arejar.
E silencia muito, mesmo estando ela a falar. E é mais de uma.
Mais os seus tantos infernos sós... E o coração?!
Ah... anda atado em nós. De marinheiro... dos mais difíceis.
Por vezes, escuto eu ela a gritar sozinha... sempre sozinha.
Não sei se alguém, além de mim, a escuta... mas faz sempre muito barulho.
Não! Não adianta! Ela não quer ninguém por perto.
E são tantas residindo nela, não por querer... ela confunde-se!
Pois que de tanto que andou por aí e teve que viver ela tantas vidas...
Ela perde-se. E por isso silencia ela, mesmo estando ela a falar.
Canta... canta baixinho quando dorme... p'ra criancinhas...
E é tão leve o canto que quando eu escuto, levito... levito...
Ela dorme muito pouco. E come muito pouco.
Mas vive muito e suas consequências todas.
Ela não agrada muito sempre, mas não deixa de dormir por isso.
O que rouba-lhe o sono mesmo, disse-me ela uma vez...
É deliciar-se na sua absoluta solidão e não precisar ser tantas.
E ela descansa não dormindo... e pode ser ela mesma. Única. Quieta.
Quieta ela e a noite à sua volta.
Embora saiba ela que os monstros sempre vêm à noite, por baixo do travesseiro...
E assusta a criança dela de outrora. De agora. E ela chora o que foi.
E o que não pode ela mais deixar de ser.
E o que poderá vir a ser se ela não conseguir "ser".
E guarda ela numa caixa, terços, broches de criança e uma chupeta velha.
Uma rãzinha de louça pendurada por uma fita, uma rosa vermelha sêca num saco.
Bilhetinhos de ciança, recados de mãe, santinhos de primeira comunhão.
Desenhos... muitos desenhos de cianças e beijinhos de batom miudinhos.
E um anel pequenino de menininha e uns óculos de graus antigos... e um relógio parado.
Tão parado quanto o tempo à sua volta quando ela, absorta com a caixa, encontra-se.
Algumas vezes eu já a vi remexer nesses guardados seus. Chora e cala. Um a um.
E disse-me uma vez que, de encontro à caixa... não consegue ser uma mulher.
É apenas uma mãe... Ora uma filha, ora uma, ora apenas a "pecadora". Mas uma mulher, nunca.
Hoje eu a vi a abraçar essa caixa e o tempo parou.
Marcou aquele relógio e desfez-lhe o rosto de mulher.
Não... não contei eu tempo nenhum! Eu não posso contar por quanto tempo!
É o tempo do relógio parado. Nenhum.
E o que sei eu é que ela está lá... E tão longe, mas tão perto...
Ela, um amor, duas saudades, três anos do tempo quando anda o relógio e a eternidade.
Ela, a caixa e os tantos guardados seus... que fazem rimas com os meus...
Eu gosto mesmo de espreitá-las... Ela e a caixa...
Paradas no tempo... Num tempo nosso.
Karla Mello
11 de Janeiro de 2013