Aldeia global
A cidade dorme enganada
Não conhece a verdadeira luta.
Do nada sabe quase tudo
Que é mal saber de si mesma,
Da mais valia, do desespero e da força bruta.
Roe os segredos, as unhas os dedos...
Não sabe que o que tem atrás dos óculos
É a mais perfeita cara do medo.
As suas regalias são carnes de pescoço
Que comem até o caroço;
E os seus degredos como tira-gosto.
Não vê que a roda viva está ativa
E mais gigante do que nunca;
Não sabe da revolução, do sangue, do dragão;
Dos frutos que, nem amadurecem
E já apodrecem no chão;
Dos guizos das serpentes mais amigas
Que nascem próximas às grandes árvores;
Das festas imodestas, das frestas,
Das sombrias serestas e das prisões;
Dos violões subversivos, dos mortos-vivos;
Dos que não pensam a TV, mas a despensa.
Das multidões que caminham só e sem rumo,
Da solidão do poeta sem prumo e sem prima;
Razão, métrica ou rima;
Do pobre, do negro, da mulher feia, se é que existe;
Da que engole um mosquito e vomita um camelo
mas, com gemidos inexprimíveis ainda persiste.
A cidade só se apavora quando acaba o mundo;
Acorda em sobressalto alto.
Mas em todas as manhãs em que um mundo acaba
Acorda mais sozinha do que cansada.
E vê que o mundo não estava acabado;
Que ainda faltava muito para é ficar pronto.