::: JARDIM DA REALIDADE :::
Jardim da realidade
Ato Único
Cena I – Folhas secas.
Era dia e mesmo assim vi-me furtado!
Passara-me a mão um punhado de letras
E furtaste os meus olhos, dedos e coração.
Retirando-me da apócrifa maldição da realidade
Com que devaneios e sonhos
Ferem-me a alma do velho jovem que já sonhou.
Porque sou molécula do nada que esta realidade se tornou;
Bebo parte de mim em goles demasiados de vinho, vodca e uísque,
Para que na sarjeta da mortalidade eu eternize minha frustração!
Eu que já fui mais amante do que poeta,
Tornei-me mais escárnio do que sonhador...
Apaga na linha do tempo cada verso infanto-juvenil
E dorme a poesia na morte da realidade!
E assim eu mostrarei o poeta que era
E escrevi o drama que me tornei.
Preocupe-se, oh!, alma quando mesmo
Diante da mais profunda dor
Não conseguirdes mais chorar...
Ei-lo o drama!
O romance carcomido pela traça da covardia;
A fé corroída na ferrugem da hipocrisia
E os sonhos perdidos nas marés da realidade...
Essas são as minhas folhas secas
Do jardim de pedras
Que se tornou o meu coração...
Cena II – Ornato secreto.
Desenha assaltante o que queres!
Desenha que padeço de dores de parto que abortou
E o amor que nascia morreu!
Desenha neste jardim de pedras os teus ornatos
E arranca o cinza que a frustação colocou
E que a negação esqueceu...
Olhas nas guias dos caminhos sem rota
O destino fétido que meu velho se encontrou
A escrever os luxos que jamais viveu!
Chegas assim, do nada e põe tudo de uma vez
No meu peito em carne viva sem perceber
Que morto revivo para gemer
A dor de tamanha insensatez.
Deixei aí, assaltante sórdido, minhas folhas secas
Pois que proteges o solo deste peito delicado
Contra os sóis e as intempéries da existência
Com as estátuas e as pedras que camuflam o eu.
E assim me assaltas... Põe versos em minhas mãos,
Enche de desejo em minha boca,
E assusta com medo meu coração...
Tem no canto deste pedregulho um broto indolente,
Um verde nas folhas secas...
Neste eu animal, um resto de gente.
Cena III – Uma gota...
Já rendido pelo assalto repentino e desatino
Estou completamente despido de tudo que era
E tão confuso de tudo que sou decido ser nada
E ter um pouco de tudo em minha alma...
Estava no ponto, no cume, na ponte e no desfiladeiro.
Achei que era morte quando pulei
Mas caí em águas estranhas... Com gostos estranhos.
E lá deitado nestas águas olhei para o céu que me refletia os olhos...
Cinza... Cinza como a morte que vem lentamente;
Cinza como a noite escura e o dia ensolarado,
Porque cinza tudo é na alma que se cinza se vê.
Veio-me, assaltou-me e foi-se.
Seu nome? Inspiração!
Seu ofício? Roubo!
Seu resultado? Confusão!
E quando foi embora, senti-me frágil e delicado
Sensibilizado pela própria existência
E uma gota dos olhos caiu...
Ainda estava vivo
E o meu jardim de realidade
Tornou-se um rio...