ESCAVADOR / FEIXES DE GELO / ZETÉTICA

ESCAVADOR I – 5 JAN 12

Como as florestas sob os restos crescem

De bosques mais antigos, a cidade,

Sobre os restos da mais velha humanidade,

Tende a crescer enquanto os anos descem.

E essas ruínas, que já desfalecem,

São recobertas até a opacidade,

Por entulho, por caliça, por vaidade

E as cinzas do passado já se esquecem.

Quando Schliemann Troia descobriu,

De nove cidades encontrou estratos,

Depois se acharam até vinte e três.

Quantas vezes o inimigo destruiu,

Sem deixar mais que a sombra dos retratos,

Veio outro povo e tudo então refez...

ESCAVADOR II – 15 JAN 12

E foi assim através de todo o Império,

Qual os romanos souberam expandir;

Foi este o império mais longo, até ruir,

Pois os romanos levavam bem a sério

O quanto construíam, desde o cemitério

Até ao circo, onde corridas assistir,

Aos templos para aos deuses erigir,

Do vasto Coliseu ao monastério.

E é provável que até durassem mais

Se a civilização ali durasse menos...

Porém a maior parte das cidades

Continuou a ser povoada, sem jamais

O barco das areias de mil remos

Conseguir extinguir-lhe a humanidade.

ESCAVADOR III

Até parece estranho que as cidades,

Desertadas por suas populações,

Submetidas por aniquilações,

Subsistissem com mais integridades,

Mas a areia dos desertos as vaidades

Cobriram integralmente e os vulcões

Formaram sobre outras seus colchões

De cinzas e de lavas nas idades.

E assim as preservaram, sem querer,

Durante séculos, até que a arqueologia

Desenterrasse dos mortos os salões,

Recuperando assim para o saber

O que não decompôs a biologia

Ou que não demoliram multidões.

ESCAVADOR IV

Pois foi assim que ocorreu nesses lugares

Que permanecem habitados por mil anos

Ou por dois mil ou mais, como os romanos,

Que nos legaram, a despeito dos pesares,

Seus aquedutos, os fóruns e os lagares

E até as estradas, seus deuses soberanos,

Suas leis e seus costumes mais humanos,

Que os praticamos ainda similares.

Mas esses blocos que foram soterrados

De um modo ou de outro nos perduram,

Enquanto os prédios foram demolidos,

Só os alicerces deles preservados,

Que as gerações seu bem-estar procuram,

No descaso das muralhas dos olvidos.

ESCAVADOR V

E foi assim que sucedeu, por muitas eras:

Os povos simplesmente construíram

Os seus prédios sobre outros que ruíram

E os templos seu lugar deram às meras

Casas modestas ao longo das esperas,

Até que novas preocupações surgiram,

Quando as românticas ruínas seduziram,

Na transferência do valor a outras esferas.

Por isso, onde existe mais cultura,

Tem mais valor uma ruína escura

Do que edifícios altivos e arejados,

Mas noutras partes, porém, ainda perdura

Esse desprezo pelos dias passados,

De que a memória chora a desventura.

ESCAVADOR VI

Nos anfiteatros de Espanha foi assim:

Descobertas as vetustas arquibancadas,

As Imas Caveas já quase niveladas,

Mas houve o esforço de revelar, enfim,

Em dezenas de outros sítios, outrossim,

Essas memórias hoje recuperadas

E em melhores condições já preservadas;

Pouco sobrou de Zaragoza ao fim

Das múltiplas nações que aqui habitaram

E os tristes restos que hoje vêm à luz

Nem de longe têm o brilho que alcançaram

As Imas Caveas que algures escavaram,

Mas nos degraus carcomidos ainda reluz

Um coágulo dos dias que passaram.

FEIXES DE GELO I (2009

Nesses espaços que estão por trás do mundo,

talvez regidos por elementais,

se encontram coisas bem mais naturais

que nossas ilusões, sonho profundo,

quem sabe a criação de um iracundo

ser invisível, de caprichos irreais,

mas que funcionam, com certeza, mais

nesses locais em que o tempo desce fundo

e se acumula como sobras de festim,

como feixes de montões acidulados:

o espaço envolve < o tempo encobre > o espaço

e o espaço envolve o tempo dentro em mim

e os sentimentos têm forma, atormentados

pelo tempo que me amolda em seu abraço.

FEIXES DE GELO II (29 set 11)

Vejo os espaços em periférica visão,

pelos cantos dos olhos, de soslaio,

pelos cantos entoados pelo raio,

pelos cantos sextavados da ilusão.

Vejo os espaços em cristalização,

sempre ao redor de mim, leve desmaio,

pouco mais do que um piscar, um sonho gaio,

que se entreveem, em sua decantação.

Vejo os espaços quais cristais de gelo,

cruéis e belos, águas-marinhas faiscantes,

porém de transitória duração.

É necessário conservá-los com desvelo,

apenas com o olhar, sem por instantes

sobre eles derramar respiração.

FEIXES DE GELO III

Essas brechas no tempo são regidas

por criaturas de forma indefinível,

quais os duendes do folclore incrível

ou os elfos e gnomos das compridas

lendas nórdicas, no inverno redigidas,

para passar o tempo inexaurível,

cada qual guarda um portal intransponível,

falsas imagens apenas pressentidas;

e é nessas noites de profundo inverno

que desce o tempo ao ponto mais profundo

e nos permite acesso ao desvario,

enquanto o narrador murmura terno,

talvez pensando imaginar, jocundo,

enquanto puxa o tempo como um fio...

FEIXES DE GELO IV

Mas o que vemos desse pespontar,

em que é a geada a linha e o carretel,

é a neve em tessitura de burel,

pálida roca e fuso do sonhar,

caleidoscópico reflexo a bailar

entre colmeias de congelado mel,

os baluartes e ameias de um quartel

guarnecido pelos gênios do avatar;

porém de forma igual, os sentimentos

aqui se coalescem e definem

e a grosso modo, se tornam criaturas

atormentadas por antigos juramentos,

feixes de gelo, grilhões que assim comprimem

e os retalham ante o olhar como figuras.

FEIXES DE GELO V

Os sentimentos sobem lá do fundo,

em que outros tempos os haviam acrisolado,

cada um em velhas gestas enrolado,

cada qual a se mostrar mais iracundo.

Os sentimentos desse poço mais profundo

são atados em feixes, reforçado

cada um deles pelas fímbras do passado,

cada qual deles pelas dores de seu mundo.

E nesses feixes de gelo são fantasmas

do que seriam verdadeiros sentimentos,

iguais que encarnações das emoções.

Universais envolvidos nos miasmas

da antropomorfização dos elementos

desentranhados de vermelhos corações.

FEIXES DE GELO VI

E desse modo, o tempo amolda a mim.

Não esse tempo em que tateio diariamente,

mas esse tempo escondido do presente,

o tempo à espreita de todo o tempo, enfim.

O tempo envolve a mim, que envolvo, assim,

todo o espaço que o tempo empurra à frente,

todo o tempo que o espaço torna ausente,

encubro o tempo e o espaço no outrossim.

O tempo existe dentro de minha mente

e só no tempo a minha mente existe,

somos as faces de um duplo carretel.

E enquanto o tempo o carretel, plangente,

desfia sobre o espaço e plange a mente,

a desfiar seus mil sonhos de ouropel...

ZETÉTICA (Investigação) - 2009

Nas engrenagens do tempo, sou relógio.

As nuvens eu afasto, em manivela.

Sou o ponteiro irrequieto da procela

que assinala deste dia o necrológio.

Eu junto o tempo, momento após momento

e o vou amealhando nos meus braços.

Das horas mortas já conheço os traços

e retempero mundo e pensamento.

Guardo essas horas no fundo da algibeira,

para pescá-las, quais fossem moedas

e usá-las em pedágio de passagem.

Juntam-se em dias e fazem-se capoeira

e assim, ao precisar, terei cem medas

dessas espigas de tempo e de miragem.

ZETÉTICA II (28 SET 11)

Queria os tempos marcar como o ponteiro

que marca as horas, cheio de imponência,

sem demonstrar maiores impaciências,

por saber não precisar chegar primeiro.

Enquanto os outros se esfalfam bem ligeiro,

o ponteiro das horas tem cadência,

avança devagar, sem penitências,

o seu progresso garantido por inteiro.

Se esforça o ponteirinho, qual criança,

carregado de entusiasmo e de energia,

proclamando um incessante tique-taque...

E até o ponto em que a memória alcança,

só empurra o outro ponteiro, em sua folia,

para iniciar a outra hora um novo ataque...

ZETÉTICA III

Não sou ponteiro, muito certamente,

nem sou escravo perene da engrenagem.

A corda eu dou, consoante minha visagem,

sem grandes empecilhos, calmamente...

Mas admito, sem precisar muita coragem,

ser parafuso de aparelho diferente:

roda dentada, igual que toda gente

da sociedade humana em sua voragem.

Pois ela roda comigo e me carrega.

Faço o que querem quase todo o tempo

e raramente faço o quanto quero.

Não há revolta nesta minha entrega:

não quebro os dentes em cada contratempo,

enquanto o tempo de parar espero...

ZETÉTICA IV

Contudo, mesmo assim apaziguado,

calmo e tranquilo, sem me revoltar,

nas aparências aceitando o deslizar

do meu tempo social determinado,

eu vivo na tocaia, estou homiziado

nos patamares de meu próprio sonhar:

assisto o filme, mas busco recortar

cenas daqui e dali para o meu lado;

e desse modo, as convenções mantenho

e cumpro as leis, sem me deixar domar,

buscando ser autêntico e sincero;

e meu anseio de explodir contenho,

pois não quero as engrenagens destroçar,

enquanto roubo os instantes que mais quero.

ZETÉTICA V

Esses eu guardo cuidadosamente:

os momentos de bem e de alegria,

os instantes de amor e nostalgia,

em meus frascos de cristal deliquescente.

Guardo alguns com ardor de delinquente,

para espiar depois como eu agia,

para lembrar das coisas que eu fazia

e daquelas realizadas com outra gente.

Porém momentos guardo de despeito,

de tristeza, de desgosto e de rancor,

a recordar-me dos erros cometidos,

bem entranhados, fundo no meu peito,

maugrado meu, com espinhoso ardor,

que se recusam a serem esquecidos.

ZETÉTICA VI

Porém sou mais cioso dos momentos

que coletei durante minhas esperas:

essas pequenas, inquietas bestas-feras,

armazenadas quais entretenimentos.

E nos instantes tornados em crateras,

quando preciso completar assentos

e o tempo passa, fugaz quais juramentos,

enrodilhando-se em múltiplas esferas,

então eu desenrolo a tampa fria,

após romper o lacre do passado

e retiro tais momentos, com cuidado,

usando o tempo que inquieto ali jazia

para esticar o tempo já cansado

com as antigas efusões dessa energia.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 16/04/2012
Código do texto: T3615466
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