Poesia para uma tarde
Não vejo flores sobre mesa,
as louças estão sujas de lembranças e os corpos cansados dos meus pais repousam fatidicamente no sofá vermelho.
As cortinas dançam timidamente com o pulsar do vento em suas fibras. E eu fico ali,parado com a taça de vinho na mão, esperando a hora exata de comemorar o que virá.
Mas o que virá? Um monstro gélido, de longas narinas fétidas e garras afiadas para me matar como quem mata um urso em plena selva fria?
Não sei bem. Enquanto isso, nessa tarde morna de domingo,
a taça se sobressai da minha mão e eu ali, parado, esperando o momento do brinde.
Meus pais anônimos no sofá
as louças sujas de lembranças sujas
e eu perdido nesse mar de revolta que faz meu corpo correr em direção desse abismo que se abre sob meus pés.
A tarde se desfaz tal como o amor que não foi correspondido se desfaz no coração de quem se ilude por ele.
O sol vai tirando sua roupa brilhante e se escondendo nas curvas do tempo enquanto a noite, pérfida e linda, vem como rainha imperiosa sobre seus súditos.
Tudo ainda está do jeito que sempre esteve. Eu ali, parado, com a taça de vinho, que se evapora, se tornando um vinagre amargo que invade minha pele.
Não sei se falo algo. As coisas não mudaram tanto assim.
A tarde se esvai como leite que some na boca de uma criança e eu ainda tenho que viver o resto desse dia pelo resto de todos os meus dias. E me sinto tão fraco, tão tolo...
As coisas se refazem num piscar de olhos. Mas nada muda tanto como pensamo que muda. Apenas adquirem novos discurso, novas épocas.
A minha taça se quebra no calor diabólico das minhas mãos.
Meu peito arde em sonhos e a tarde se cala.
Ela não é capaz de me mostrar o que ainda resta pra viver. Nem se posso viver do resto que ela deixa tatuado sobre minha pele.