Quando não se quer magoar mais ninguém, (nem a si mesmo...).
Quando não se quer magoar mais ninguém, (nem a si mesmo...).
Eurico de Andrade Neves Borba
Ana Rech, Agosto de 2011
Dedicado a mim mesmo
Quando não se quer magoar, nem ser magoado por ninguém,
pelas muitas e incontroláveis atitudes e palavras de que se é alvo,
muitas vezes imerecidas, cruéis e que machucam demais,
ou pelo que se diz sem pensar nas conseqüências,
motivado por momento raivoso, provocando situações sem retorno,
onde a lembrança do que foi dito impede que se refaça o passado.
Quando os silêncios e isolamentos radicais a que se é submetido,
ao se prosseguir com persistentes indagações pouco usuais,
cujas respostas não oferecidas, incomodam tanto quem as faz
e muito mais aos que não as sabem ou não as querem responder.
Quando passa a ser intolerável continuar sofrendo angustiado os dias e os anos todos, simulando estar bem, com um comportamento ridículo
que incomoda a circunvizinhança,
com a evidente mostra escancarada de uma felicidade não vivida,
estampada no rosto, impossível de disfarçar.
Quando se tem a consciência de que se é objeto de piedade mal disfarçada,
de condescendência educada com a desagradável presença ou companhia que se é,
sem mais amigas e amigos, aqueles poucos que entenderiam o desabafar,
e a maneira de ser sem nada precisar explicar – apenas gostávamos de estar juntos...
Quando as portas da existência
e da Transcendência se fecham,
e disso se tem conhecimento e certeza definitiva.
Quando o amor desesperado por uma mulher, por fim encontrada,
não é suficiente para juntar os estilhaços de uma alma despedaçada
que vão desaparecendo confusamente em espaço desconhecido,
profundo, sem fim, escuro.
Quando a necessidade de conversar esperando que apenas ouçam,
para depois comentar, dialogar, sem precisar concordar ou discordar, mas escutando
e procurando perceber o que se está querendo dizer, se torna uma experiência mortificante e inócua, nesta altura da vida em que já se dispensa a necessidade de apoio.
Quando se deseja nada mais do que o interesse e respeito, por aquilo que foi toda uma existência e a formação de um eu distinto dos demais
se manifeste, pelo menos, em delicada simpatia.
Quando não mais se necessita do diálogo impossível,
que se acreditava pudesse sempre acontecer e elucidar tanta coisa,
e não o constante rechaço e progressiva exclusão dos convívios que tanto se quer...
Quando tudo isso começa a acontecer é sinal seguro que
está na hora de ir embora...
Percebo, com sofrimento e muita irritação,
que não se interessam mais pela minha opinião,
não me respeitam – aturam, esperando o tempo passar...
não temos mais vez, nós os nascidos antes da segunda guerra mundial...
Os jovens de Woodstock nos suportavam para poder discutir.
A geração da internet não nos quer por perto e não tem curiosidade no que pensamos.
Nos proíbem de opinar e de participar da vida pela maneira como nos tratam.
Somos, os setentões, tão chatos e vazios assim, de experiências interessantes?
Não sabemos mais nos expressar? Nossa história não conta mais para a história
que hoje se continua a construir?
Então está mesmo na hora de ir embora.
Minhas verdades nenhuma conseqüência trarão para os atuais acontecimentos.
Minhas verdades só a mim importam como compensação do meu viver.
Poder conviver como sou, com meus ritmos, com minha forma de pensar
e de julgar o que acontece com as categorias éticas com as quais cresci e minha geração
utilizou, para construir este mundo, esta liberdade, este começo de justiça que
estão a destruir, finalizando assim o nosso trabalho, sonhos e esperanças...
Jurávamos que éramos fraternos, solidários e que havíamos plantado, definitivamente,
a semente imorredoura da democracia, da liberdade e da fraternidade.
Acreditávamos na possibilidade plena do amor e da amizade.
Participávamos das procissões entoando o:
“Queremos Deus, homens ingratos, a paz suprema do Redentor,
zombam da fé os insensatos, erguem-se em vã contra o Senhor...”
Logo no quarteirão seguinte cantávamos com punho direito erguido:
“De pé, ó vitimas da fome, de pé famélicos da terra, da idéia a chama já consome
a crosta bruta que a soterra.... Bem unidos façamos nesta luta final, uma terra sem amos - a Internacional.”
Gloriososas passeatas. Gostosos sonhos. Fantasticas promessas.Desilusões cósmicas.
Neste final dos meus dias aqui neste planeta tão poluído...
só resta a fúria mais grosseira, as palavras mais ásperas, a vontade de bater,
que aliviam minha alma, digo tudo o que quero,
mas afasto as ultimas escassas atenções...
ou, então, a opção de recordar calado e acovardado das reações que me condenariam,
aí sim, ao mais completo isolamento, escondido nos possíveis cantos mais solitários, para não incomodar ninguém com a minha presença...
como que pedindo licença por ainda estar vivendo.
Talvez tal situação seja o resultado de mal feitos ou incompreensões passadas,
frutos da minha maneira de ser cioso das minhas verdades.
No entanto, neste momento em que as possibilidades de convivência se esgotam
por limitações físicas progressivas ou
por motivos que agora sei terem sido fúteis...
resta um vazio fundo, escuro e frio, de completa solidão que aterroriza e amedronta.
Só resta pensar na retirada final,
o sair de cena com alguma coerência e dignidade – em silêncio.
Quando nem as forças do corpo, nem a vontade permitem mais representar,
fingir conviver ou aceitar estar só com fisionomia tranqüila e cordial.
Quando se tem plena consciência do fim irreversível de uma jornada
e nada, nem mesmo no passado, é útil para lembrar e fazer suportar o presente.
Resta ser – pelo menos uma vez, soberano e livre, consciente e só
na decisão de morrer, no momento escolhido e como quero.
Nunca acreditei poder ser santo, corajoso de poder enfrentar o martírio,
o maior deles que é o de ficar isolado sem ter com quem se comunicar...
De, enfim, ficar consigo mesmo, sem mais nenhuma
necessidade ou responsabilidade ou explicações a dar.
Sem nenhuma preocupação ou indagação a fazer,
sem a necessidade de gestos, sem precisar de ninguém...,
sem os argumentos que me apresentam a cada instante e que me contraditam,
incomodando e angustiando mais um pouco quem não suporta mais nada,
importunando e fazendo sofrer um pouco mais quem nada mais quer ou deseja,
nem o amor, que não comporta nenhuma indagação...
É fácil sair de cena, mais fácil do que se pensa.
Basta confiar nos benefícios do silencio que vem com o fim,
na contemplação permanente do infinito desconhecido e que deve ser belíssimo,
ou do mal com o qual já se está acostumado, e que é feio e incomoda.
Com o ódio e o desprezo a tudo e a todos, que se não esclarece nada alivia a vida
não pedida nem querida, a que fui obrigado a viver...
Talvez ainda tenha forças para chegar à janela
e me seja permitido enxergar um amigo, que por puro cacoete,
sem o estímulo de nenhum instinto divino, vire a cabeça em minha direção:
“o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!...”
Não tenho nenhuma garantia nem a certeza de que tal gesto fará com que
o meu universo se reconstrua, mesmo sem ideal e esperança,
nem que “o Dono da Tabacaria”, chegando à porta do seu estabelecimento
venha sorrir feliz com a cena...
Tranqüilo resta escolher o instrumento certo, passaporte eficiente e
que sem muito estardalhaço, ajude a deixar a agitação da existência,
para repousar eternamente na tranqüilidade do nada.
E, num ultimo arfar de lucidez heróica, poder mandar,
com rara alegria e desprezo, todos,
- a puta que os pariu...