DESPEDIDA

Já vivi 38 anos.

Neste milésimo cigarro do dia

começo a preocupar-me com as coronárias.

Preparo um whisky para completar o ritual...

Senhor advogado estas são as primeiras notas, para o caso do inevitável evento:

1º Não deixo bens. Plantei poucas sementes, entretanto, o solo anda meio árido.

2º Deixo minha pele. Está um pouco marcada: Alguns riscos. Foram artes da infância. Outros, porradas da vida.

Vê-se que não é muito bonita mas bem tratada servirá como agasalho.

Outra opção é curtí-la bem; poderá redundar em boa sola.

3º Meus olhos eram bonitos. Hoje apresentam vestígios do pterígio operado e outro por operar.

Mesmo assim, são expressivos - Enquanto vivos.

Leve-os imediatamente a um banco de olhos, pois as córneas são aproveitáveis.

4º As vísceras poderão alimentar qualquer cachorro faminto. Não as deixe estragar.

5º A gordura ( Fiquei um pouco obeso nesta puta vida pequeno burguesa) fornecerá bom óleo para qualquer candeeiro precisado.

6º Meu cérebro- pobre cérebro -tem muito fosfato. Adube qualquer terreno estéril.

7º Do resto façam o que quiser.

Os ossos darão bons artesanatos ou, se triturados, bom adubo também.

NB: Quanto ao coração deixem-no sossegado.

As coronárias estão meio obstruídas, mas o

coração é grande...É bom.

Enterrem-no em lugar simples e bucólico.

Não demarquem o local.

Tenho certeza que lá brotarão flores.

Corpo presente de amores deixados.

(Amaury da Silva Rego - Rio de Janeiro, Brasil) TRISTE, MAIS MUITO BELO.