O Cantor

O cantor silenciou a mente

No tapete do quarto

Em baixo da cama

Escondeu seus sons entre a poeira dos móveis.

Mas tinha que abrir a janela

Lidar com o dia que lhe traria a última noite.

O estrondo do sol nos seus olhos astigmáticos,

As mãos calejadas de pregar solado em botinas,

Alisavam o cabelo oleoso

Que agora já era pouco e grisalho

Mas tinha que olhar pela janela

Espiar a rua mesmo que fingindo desinteresse

Olhar a padaria mais uma vez

Deduzir o pensamento de alguém que passeava pela praça.

Encostou-se na janela

Sentindo-a molde de um rosto agressivo

De um corpo cansado.

E de um suspiro longo

Resolveu fazer a barba e colocar seu sapato social marrom

E também usar finalmente a faca de prata

Para cortar fatias de pão doce para o almoço.

Durante a tarde

Quando a janela era apenas frestas amarelas

Um pedaço de goiabada,

Uma leve dor no peito

Recorreu ao copo de água

Mas ela esnobe

Passou reto à sua degustação.

A tardinha chegava

E a temperatura era agradável

Astor Piazzola pendurado na porta

Era o que lhe restava de mais bonito.

Deitou-se e sonhou interpretar Libertango por algumas horas.

À noite,

Vozes entravam como vento gelado

Foi acordado pelos jovens que cantavam pela rua

Encerrou a janela

E trancou a porta.

Tirou a poeira dos móveis

Ergueu a cama

E sacudiu o tapete

Antes de dormir para sempre,

Deixaria sua voz entre as quatro paredes

Inspirou forte e firme

Como quem busca o ar da Terra.

Seu diafragma dilatou

E seu coração parou.

E o chão abraçou aqueles olhos assustados.

Seu ar ainda vaga mudo por lá

Há muitos anos, vaza pelo buraco da fechadura

Talvez vaze para sempre.

Ainda suspeito que tenha encontrado todo o ar do planeta

Óli
Enviado por Óli em 09/08/2011
Reeditado em 11/11/2011
Código do texto: T3149278