O Cantor
O cantor silenciou a mente
No tapete do quarto
Em baixo da cama
Escondeu seus sons entre a poeira dos móveis.
Mas tinha que abrir a janela
Lidar com o dia que lhe traria a última noite.
O estrondo do sol nos seus olhos astigmáticos,
As mãos calejadas de pregar solado em botinas,
Alisavam o cabelo oleoso
Que agora já era pouco e grisalho
Mas tinha que olhar pela janela
Espiar a rua mesmo que fingindo desinteresse
Olhar a padaria mais uma vez
Deduzir o pensamento de alguém que passeava pela praça.
Encostou-se na janela
Sentindo-a molde de um rosto agressivo
De um corpo cansado.
E de um suspiro longo
Resolveu fazer a barba e colocar seu sapato social marrom
E também usar finalmente a faca de prata
Para cortar fatias de pão doce para o almoço.
Durante a tarde
Quando a janela era apenas frestas amarelas
Um pedaço de goiabada,
Uma leve dor no peito
Recorreu ao copo de água
Mas ela esnobe
Passou reto à sua degustação.
A tardinha chegava
E a temperatura era agradável
Astor Piazzola pendurado na porta
Era o que lhe restava de mais bonito.
Deitou-se e sonhou interpretar Libertango por algumas horas.
À noite,
Vozes entravam como vento gelado
Foi acordado pelos jovens que cantavam pela rua
Encerrou a janela
E trancou a porta.
Tirou a poeira dos móveis
Ergueu a cama
E sacudiu o tapete
Antes de dormir para sempre,
Deixaria sua voz entre as quatro paredes
Inspirou forte e firme
Como quem busca o ar da Terra.
Seu diafragma dilatou
E seu coração parou.
E o chão abraçou aqueles olhos assustados.
Seu ar ainda vaga mudo por lá
Há muitos anos, vaza pelo buraco da fechadura
Talvez vaze para sempre.
Ainda suspeito que tenha encontrado todo o ar do planeta