HERÓIS NO INVERNO & MAIS
HERÓIS NO INVERNO I (Odysseos) 2010
Depois de percorrer tanta aventura,
sento-me manso à beira da lareira;
Penélope, a fiel, esposa pura,
guarda ainda nas feições a derradeira
beleza posterior a tanta agrura.
Prima de Helena, não foi ela a primeira
esposa que busquei, nem a mais bela,
mas se tornou, afinal, minha guia e estrela.
Telêmaco ajudou-me, foi bom filho
e para ele deixarei o trono,
pois defendeu-me, ao encaixar do atilho
com que armei o arco, em desabono
para tantos pretendentes e, com brilho,
a todos eu matei, porque era o dono
do ênio arco que apenas eu curvava
e com a força de meu braço eu alvejava.
Mas o tempo passou, olha-me agora,
percebo bem, na esguelha da impaciência.
O tempo escoa e se retarda a hora
em que me corpo às chamas da leniência
será entregue e sente que pôs fora
a vida, a aguardar, em complacência,
que eu finalmente morra de cansaço,
sem mais a vida reter em meu abraço.
Já não consigo mais armar meu arco:
sei que Telêmaco nunca o conseguiu.
Os fiéis companheiros de meu barco
acenam da outra margem. Tânatos riu,
enquanto Eros me fazia o marco
de mil jogos amorosos... E me viu,
antecipando a verdadeira sorte,
neste ancião que somente espera a morte.
HERÓIS NO INVERNO II (Yehoshabeath)
Há muito tempo descartei a lira:
não mais componho canções para mulheres.
De quanto fiz, enquanto a vida gira,
permaneceram, permeio a meus misteres,
aqueles que mais fundo a alma fira:
os salmos que escrevi, nos quais esperes
um contato mais íntimo com o Altíssimo,
ao perceberes o quanto és pequeníssimo.
Shaul me perseguiu, em sua loucura,
pois combati na vida dois gigantes:
esse que na lembrança ainda perdura,
pobre Goliath, de gritos triunfantes,
que nem sabia combater... E vi a escura
golfada de suas veias espumantes...
Mas o rei foi homem alto e, afinal,
foi de sua mão que sofri o maior mal.
O tempo se passou, pelo deserto,
pelas cavernas, por acampamentos.
As mulheres recebi de peito aberto,
os inimigos enfrentei com armamentos.
Com minha harpa espantei, isso é bem certo,
esses demônios de maléficos portentos
que atormentavam meu rei predecessor,
tangendo hábil suas cordas, com calor.
Mas hoje... Nem sequer a mim aqueço,
durante os frios dias hibernais...
Tantas mulheres tive, com apreço,
e nada posso fazer com as atuais...
Tenho só setenta anos!... Não me esqueço,
mas já perdi meus dotes naturais...
Porque, afinal, embora eu morra rei,
não restam dúvidas de que morrerei.
HERÓIS NO INVERNO III (Herakles)
Estou cansado de tantas aventuras,
de caçar monstros por aí e em guerras
ter de assistir a tantas desventuras
de meus amigos por estranhas serras.
Por maldição de Hera, mil torturas
já enfrentei nas mais selvagens terras.
Agora é tempo, enfim, de descansar
e, finalmente, recolher-me ao lar...
O único problema é esse ciúme
de minha nova esposa, Dejanira,
que, às vezes, me trata com azedume,
procurando as palavras com que fira,
sem perceber que prefiro o seu perfume
a qualquer outro que pelo mundo gira:
que já não quero buscar outros abraços,
quando posso refugiar-me nos seus braços.
Dejanira passa os dias no tear,
tecendo para mim manto vermelho...
Até hoje, só usei para abrigar-
-me a pele do leão, em que me espelho
no tempo em que era jovem e em que lutar
me entusiasmava muito mais que um relho...
Cortei-lhe a pele invulnerável com suas garras
e de seus próprios tendões fiz as amarras...
Só que agora, não sei se faz mais frio:
a pele do leão não mais me aquece.
Embora minta, por força de meu brio,
eu sei que Hera, em derradeira prece,
suas pragas me rogou. Já me arrepio,
nesses momentos em que a geada desce...
Vou enrolar-me, assim, no longo manto
que Dejanira me teceu com tanto encanto...
ASITTAWANDAS I (poema em terza rima)
Os olhos me contemplam. Olhos, bocas,
envoltos no nevoeiro do invisível,
olhos sem rosto, ocultos por mil toucas.
Quem não percebe esta poeira do insensível,
esse coro calado em ânsias loucas,
esses olhares cruzando o intransponível?
Quem não consegue respirar a poeira,
empilhada em cada altar da atmosfera,
que nos envolve até a hora derradeira?
Quem não partilha dessa densa espera,
essa impresença completa e bem certeira,
essa engrenagem de pássaro e de fera?
Essa aliança que nos ara qual charrua,
cujos olhos me contemplam, sem vaidade,
a cada vez que me atrevo pela rua?
Olhos antigos da velha humanidade,
olhos espessos em sua bruma nua,
na vidência desse olhar de opacidade...
ASITTAWANDAS II
Se alguém tirar um fac-símile de mim
(ou mesmo um fax, por abreviatura),
não estou certo do que terá, enfim.
Talvez consiga, por minha desventura,
reproduzir somente o que há de ruim
e refletir tão só minha face obscura.
Talvez consiga, por infelicidade,
de mim fotografar só o lado bom
e me deixar envolto em minha maldade.
Ou quem sabe, por vezo de bom-tom,
crie de mim, na ânsia da inverdade,
uma imagem social de falso dom.
O fato é que, nas fotos sem poesia,
o rosto que me surge desconheço:
é uma figura sem vida ou fantasia
que comparo ao espelho e ao rosto meço,
sem encontrar de mim o que eu queria,
mas só o reflexo de que fácil me despeço.
LOKESWARA I (metamorfo em sânscrito) (29-09-10)
Dizem que amor é mistério, mas não vejo
o que exista de estranho em seu segredo.
Amor é vagabundo, sonho andejo,
companheiro e adversário de teu medo.
Amor é glória exposta, amor é pejo.
amor é vero e não passa de arremedo.
Amor se esconde e se expõe impunemente,
mas nisso tudo não há qualquer mistério...
É mais enigma a quimera dessa gente
que busca amor por demais levar a sério.
Amor é coisa que surge, simplesmente,
explicar o quanto seja é despautério.
É a natureza humana, em seu pendor,
que amor atiça até que amor se esvai,
buscando o próprio amor com mais ardor.
E eu acho graça, ao ver o que me cai
e permaneço assim, sentindo amor,
como essa coisa grudada, que não sai.
LOKESWARA II
Eu já cheguei a crer que amor assim pudesse
em alguém inspirar, de modo bem completo,
amor abnegado que tudo o mais quisesse
em grau menor que a mim, amor meio secreto,
que a qualquer sacrifício por mim se dispusesse,
que comigo partilhasse a cor do mesmo espectro.
E muito eu escrevi sobre esse estranho amor,
que todos já sentiram, mas que ninguém conhece,
amor feito hipoteca, em todo o seu valor...
Amor perante o qual o eu desaparece,
ansiando por queimar-se na fonte do calor,
amor de ladainha, no ângelus da prece.
Perante tal amor, eu fui um metamorfo:
a cada qual que vinha, eu era o que esperava,
mostrando a concretude de meu ideal amorfo,
por perceber, enfim, que o mesmo eu encontrava:
mostravam para mim do coração o escorço,
enquanto as almas mesmo eu nunca conquistava.
HEBETUDE I (Inércia Mental) (01/10/2010)
A Lua corria no chão, por entre as folhas,
enquanto os galhos se moviam pelo breu,
na implacável reunião de suas escolhas.
Embora o veja, pressinto não ser meu
esse mundo que explode em tantas bolhas:
talvez suspeite que o mundo seja teu.
Esse mundo que a mim não pertenceu,
que preferia, até mesmo, ter criado,
para dar-te de presente, envolto em véu.
E me percebo, ao contrário, presenteado,
como se fora tua presença o céu
que, sem acanhamento, vejo ao lado.
Tapete mágico sob os dedos eu desfiz,
enquanto a Lua escorre, em nostalgia,
por entre as flores da noite, em escala gris,
num ziguezague lento, quando eu cria
possuir maior valor que o som do giz
que em quadros-negros da alma me escrevia.
HEBETUDE II
Corria a Lua nos quadros de seu rosto
e estranhamente mudava de expressão,
passava logo do prazer para o desgosto
e eu não sabia se nessa mutação,
essa camada dos ventos frios de agosto,
ela mesma expressaria uma emoção
ou se era simplesmente a clara luz
que lhe moldava os traços em escala
de azul e cinza, quando se produz
transformação mais rápida que a fala...
Era o fulgor a brilhar dos olhos nus
ou só o reflexo da Lua, em plena gala?
Só sei quanto mudava e parecia,
em momentos etéreos, cristalina,
depois mostrava-se lúgubre e sombria.
Se quem andava a meu lado era a menina
ou outra sombra para mim sorria,
eu nem sabia, ao gotejar da sina...
TRAVESSIA
A bordo vinham meus sonhos; antigamente
Usavam uniformes, brava gente,
A enfrentar garbosamente oceanos.
Eram sonhos reais; na fugidia
Luz da manhã o seu olhar luzia,
Contemplado, a sorrir, por veteranos
Que doutras tantas viagens navegavam
E sabiam como os mares destratavam
Os sonhos jovens nas ondas refulgentes:
Que muito em breve, essas tranquilas ondas
Seriam mais profundas do que as sondas
E os sonhos não seriam suficientes.
Não é que houvesse tantas tempestades:
Foi mais a calmaria, as saciedades,
A despertar em minhalma a sensação
De que tudo era inútil desatino,
Que a multidão dos sonhos de menino
Não era mais que vaga exaltação.
Seguiram no navio, trocando as velas,
Aqueles pobres sonhos, já sequelas
Do que antes tinham sido; inquietação
Constante no intestino, enjôo manso,
Sabendo que esforçar-se sem descanso
Não impediria sua lenta esgalhação.
Foram sendo superados, um a um,
Amorteceram; afogou-se algum,
Porém a maioria adormeceu.
Do olhar se foi a luz... Ficou desdita,
A luta se manteve, nessa aflita
Contemplação de um ser que não morreu,
Mas não vive tampouco, nessa mágoa
Inconseqüente de trilhar a tábua
Sempre oscilante do velho tombadilho:
Percepção constante e visceral,
Que não importa o ardor mais triunfal
No oceano da vida: escuro e brilho
Independem de nós, são aleatórios,
Os ventos nos arrastam, peremptórios
E o bem e o mal nos chegam sem esforço.
Sobreviveram os sonhos, resistentes,
Porém sabendo que muito mais potentes,
São o acaso e a aleivosia, seu reforço.
Assim os sonhos passaram a cumprir ordens
Dos desgostos, das pragas, das desordens,
Tornaram-se confiáveis e obedientes,
Esperando, talvez, terminaria
Em um porto essa viagem, dia a dia,
Contrário o vento e de tufões freqüentes.
E a bordo vêm meus sonhos, no presente,
Esfarrapados, magoados, no impotente
Esforço de cumprir tanta rotina,
Roídos de escorbuto, doidos, fracos,
Escravos da esperança, pobres cacos,
Com lustro ainda ao fundo da retina.