ESPERA INÚTIL 1-12

ESPERA INÚTIL I

Eu sinto em mim de novo o imortal fogo

que me faz combater a entropia:

reúno sentimentos e energia

para aplicar em mim, sem qualquer rogo

de obter para mim fichas do jogo

da vida: essa virtual melancolia,

que enfrento sem desgosto, dia a dia,

sem protestar, sem ódio e sem regougo;

ainda que, por vezes, até possa

me parecer, permeio a meus deveres,

que a saga de minha musa se esvanece,

logo retorna, real, logo se esboça

em novo traduzir de meus prazeres,

na imperfeição divina de uma prece.

ESPERA INÚTIL II

Agora, a chuva brota sobre mim:

eu sou adubo e nascem plantas d'água;

eu sou crisálida no canto desta mágoa;

eu sou arco-íris, a reluzir assim,

saído de meus lábios; sou, enfim,

pararraios e relâmpago; sou a frágua

de cada ribombar; e vejo n'água,

refletidos, meus dentes de marfim;

eu sou trovão, no derradeiro gesto;

sou estertor e o grito nascituro;

eu sou da vida o imortal clamor;

sou amoral também, no meu incesto,

que tudo prende e tudo traz seguro,

fingindo em versos não sentir amor.

ESPERA INÚTIL III

Na presciência do grito, rua a rua

percorrem meus fantasmas, seminus,

com eles me deparo, nestes crus

entrecruzares, assolados pela lua.

Não sei se sou eu mesmo ou sou passado,

quando deparo comigo. Incontinenti,

nessa visão de mim, sou mais potente,

pois marcho no seu grupo, lado a lado.

Revivo meu passado e o considero:

renovo os meus tempos mais mesquinhos,

porque, de fato, são só palimpsestos...

Meus espectros verão, de rosto austero,

que gozaram seus prazeres comezinhos

e comigo praticaram seus incestos...

ESPERA INÚTIL IV

Meus fantasmas se conectam às sombras dela,

que nessas ruas mesmas palmilhou

o sonho do irreal. Quem mais sonhou,

afinal, o impossível? Eu ou ela...?

Nossas sombras se cruzam, "pimpinela

escarlate" de tal romance antigo...

São meus fantasmas que lhe dão abrigo,

seus espectros me abrem sua janela...

E piso exatamente onde seus passos

pisaram ontem e não pisam mais,

carinhos morrem com o afagador...

Hoje, que a chuva deletou regaços,

eu me percebo o fantasma do jamais,

de mil sombras furtivas caçador...

ESPERA INÚTIL V

Eu sinto o cheiro do pó de tantos corpos;

lambo do ar o som de tantos passos;

meus ouvidos percorrem mil regaços

de corações batendo, em anticorpos

lançados contra mim: sou triste intruso,

sem direito a um olhar sequer randômico;

meu coração também bate, no seu cômico

dardejar de fractais... São fios de fuso

desenvoltos e orfanados de sua roca.

Minha vida é um novelo de impaciências:

tapeçarias frágeis e abstratas...

Meu próprio cérebro um animal na toca,

com medo de sair, nas indulgências

dessa tocaia de que nunca me resgatas...

ESPERA INÚTIL VI

Um dia, talvez leiam estes versos

os olhares curiosos que me espiam;

talvez meus próprios olhos me sorriam,

por meu expor-me em esgares tão diversos...

Quem sabe, um dia, aceito estes perversos

gladiadores, que as bênçãos maldiziam;

azafamares, que as maldições desfiam,

em remorsos multicores e dispersos...

Mergulhando pelo mundo, em sentimentos

represados por outrem, plenamente,

que, de algum modo, veem a luz por mim,

nesse parto de selvagens pensamentos,

manifestados tão só intensamente,

pelo descaso que esperam ter no fim.

ESPERA INÚTIL VII

de novo, a espera, velozmente Lenta,

na lentidão veloz que me Alimenta,

quando soergue, levemente, o Véu

e vejo o vácuo que a mortalha Esquenta.

melhor é contemplar a densa Bruma,

desse mundo irreal que me Resuma,

quando, entre os dedos, se derrama o Céu

e o sol me beija, em olhos de Verruma.

pois me perfura a alma, sem Carinho,

esse sol que a lua mostra, em seu Bordado,

a cintilar nas gotas de minhas Mãos.

qual me penetra o peito, de Mesquinho,

esse amor desvaído e Aveludado,

por centelhas de arco-íris em Desvãos.

ESPERA INÚTIL VIII

eu sei e bem não sei da espera Dúctil,

maleável seda de aço Cristalino,

no estertorar do mundo Peregrino,

envolto na estamenha do Inconsútil.

porque, afinal, toda esta vida Fútil

se agiganta na ampulheta, em som de Sino,

se faz anã, no luzir mais Pequenino,

dos grãos de areia, em seu esforço Inútil

de tornar a subir pelas Paredes,

tal se pudessem o passado Reviver

e não apenas memorado Ser,

por nova vida, envolta em claras Redes,

quando o grumete chegasse a Reverter,

marcando a hora, seu tempo de Viver.

ESPERA INÚTIL IX

Meus sonhos são meus filhos; como tais,

eu os tiro da cama, dou comida,

os levo para a escola e, após a ida,

deixo que brinquem, como seus iguais...

Precisam de atenção, como os demais;

depois, o sono os leva de vencida;

quando preciso deles acolhida,

já adormeceram e não me servem mais...

Ainda os filhos, se criam para a vida,

porém os sonhos, perdido o seu vigor,

não só não sobrevivem ao sonhar,

mas nem sequer acenam despedida...

E, quando os vejo despidos de calor,

os amortalho, sem que haja despertar...

ESPERA INÚTIL X

Abrigo assim mil sonhos, de mansinho,

na timidez de criança controlada,

cada intenção de fuga bem podada,

aconchegada no mais falso carinho.

Cada sonho, um desejo pequeninho

de poder revoar pela alvorada,

de poder colorir-se, na acabada

faina do dia, que o sol transforma em vinho.

Não foi minha culpa: nunca os amansei,

tampouco fui do barco o timoneiro:

o Fado me serviu de capitão...

Desse modo, em mil beliches os deitei,

de um navio confinado ao estaleiro,

sem ter nunca transposto o seu portão!...

ESPERA INÚTIL XI

Meus sonhos são meus pais e me governam,

mas lutam entre si... Túnel estreito

é a saída a que todos têm direito,

no parto sideral em que se alternam.

Mas nesse alumbramento em que se eternam,

meu coração dominam, num perfeito

mal-entendido, que de algum modo ajeito,

sem volições, que em versos não se externam.

Sou servo de meus pais, fiel criado,

bem obediente aos textos que me impõem:

se me retraio, empregam o chicote...

E é por isso que os trato com cuidado,

que os pensamentos que à boca me interpõem,

são mil serpentes a desferir seu bote!...

ESPERA INÚTIL XII

Mas não é inútil aguardar os meus fantasmas:

são companheiros divertidos e constantes;

monotonias tornam deslumbrantes;

hipocrisias escoimam de miasmas...

E a alma inquieta que, comigo, espasmas,

na leitura de cem sonhos delirantes,

por mais que se contenha em mil instantes,

cedo ou mais tarde junto a mim orgasmas.

Porém, nada me resta para dar,

porque tudo já dei, no meu porém:

tornei-me escravo destes sonhos nus.

Também não quero mais amor cantar,

que tudo já cantei, no meu também

e me desfiz, num turbilhão de luz...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 27/05/2011
Código do texto: T2995834
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