Trâmites finais
“A morte pousou-me na orelha e disse: viva, porque estou chegando” (Virgílio)
De manhã, o dentifrício
remete a espuma vã
oferecendo a manhã
de penoso sacrifício.
Depois, as horas pendentes
em triste melancolia
assim se passa seu dia
entre dores semoventes.
De noite, segue abismado
para formar tessitura
com fios de amargura,
malha de desesperado.
Na madrugada plangente
por circunstâncias alheias
transborda nas suas veias
amarga e acre aguardente.
Sem cigarro, sem licor,
sem contar com testemunhas,
passa roendo as unhas
a ressonância da dor
De não ir a parte alguma
executando o não-ser,
dizia: quero viver!
boiando ao sabor da espuma
Que do lábio roxo brota
escrevendo uma elegia
terna e triste como o dia
em que tornou-se idiota
Deitado ali no caixão
vendo abrirem mil janelas
e olhando em torno delas
sem ter a percepção
De sua sombra apagada
num estado e condição
de defunto em construção
matéria decapitada.
Foi sua alma penada
com infinita paciência
catar e moer a crença
em doutrina ultrapassada.
Descobriu, pois, sem alarde,
virtude teologal,
que o fim é natural.
Assim fez-se a unidade.