Trâmites finais

“A morte pousou-me na orelha e disse: viva, porque estou chegando” (Virgílio)

De manhã, o dentifrício

remete a espuma vã

oferecendo a manhã

de penoso sacrifício.

Depois, as horas pendentes

em triste melancolia

assim se passa seu dia

entre dores semoventes.

De noite, segue abismado

para formar tessitura

com fios de amargura,

malha de desesperado.

Na madrugada plangente

por circunstâncias alheias

transborda nas suas veias

amarga e acre aguardente.

Sem cigarro, sem licor,

sem contar com testemunhas,

passa roendo as unhas

a ressonância da dor

De não ir a parte alguma

executando o não-ser,

dizia: quero viver!

boiando ao sabor da espuma

Que do lábio roxo brota

escrevendo uma elegia

terna e triste como o dia

em que tornou-se idiota

Deitado ali no caixão

vendo abrirem mil janelas

e olhando em torno delas

sem ter a percepção

De sua sombra apagada

num estado e condição

de defunto em construção

matéria decapitada.

Foi sua alma penada

com infinita paciência

catar e moer a crença

em doutrina ultrapassada.

Descobriu, pois, sem alarde,

virtude teologal,

que o fim é natural.

Assim fez-se a unidade.

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 01/05/2011
Código do texto: T2941843