MITOS
Disse-me um dia,
envolta na luz da glória,
a ridícula paixão pelo que a alma se desvia:
Estamos todos sós!
Senti-me só...
Contou-me, só
que estar junto
é estar só
com outro ser só.
Revelado o paradigma,
jogou-me no seio do mundo:
“Vire-se, solitário!
Pois teu destino é ser rei.
De tudo que é dos outros
arranque teu honorário
se pretende ser alguém...
Caso contrário, é otário!
Pense na companhia
do amor de quem quer que seja
como ardilosa ilusão
de alguém que a oferece
pra tomar o que deseja
e devolver solidão.
Retribua com desdém...
O que não marca, fenece.
Nunca lamente isolar-se,
pois, o contrário inexiste.
Não queira a outro ligar-se
pois, vai morrer pobre e triste.
Divida o que não lhe custa,
pois, nunca haverá constância
de algum espírito frio
que aparente relevância.”
Aceitei de coração
a verdade postulada.
Aprisionei-me na sela
feita em ferro e arrogância
do mesmo modo que outros.
Fiz a vida longa e bela,
tinha todos ao meu lado
e ninguém a curta distância.
Mas, entre vãos sufocados
por mundos egocentrados,
um monstro a todos rondava.
Engaiolado por fora
espreitando, a devorar
quem pra fora se lançava
e a cada investida sua,
meu corpo esguio o lograva.
Zombava da criatura
e causava-lhe embaraço
com acidez imatura
e crueldade inclemente.
Julgava-me inalcançável
protegido em meu espaço,
mostrando-me indiferente
à sua fome insaciável.
Numa luta interminável
pelo fluído rubro-ardente,
desejando incontrolável
o que a insolência resfria,
nada a besta conseguia.
Mas a regra foi testada:
de tanto não reagir,
meu sangue perdeu a valia.
Coagulou-se nas veias
parando a circulação.
Fez-me a pele seca e feia
que de nada protegia...
Pela ausência de emoção,
a dor da paralisia
transformou-me em suicida,
cortejando sem temor
à fera que a mim queria.
Com a alma enfraquecida
desejei fugir do mundo
sem novidade ou saída.
Selei de vez meu destino
nas garras do ser terrível,
avatar do desespero
que nos torna perecível.
Traí a sábia palavra
da paixão que satisfaz
revelando a graça plena
de poder bastar-me em paz.
Rompi minha carceragem,
prendi-me na liberdade,
neguei-me o que faz sentido.
Tomado pela ansiedade
entreguei-me ao monstro vil.
De meu ser dilacerado
todo o sangue enegrecido
mais uma vez fluiu.
Feito truque de magia,
a fera tornou-se mil,
engolindo-me aos pedaços
feito ração de canil.
Enquanto meu cerne rangia
sem clemência destroçado,
forte clamor se erguia
uníssono e alucinado:
Foi-se a carne, foi-se o sangue!
Lamentavam minha sina
os outros aprisionados.
Iludidos pela imagem
da horrível carnificina,
desdenhavam meu bom grado
por dar início à viagem
que faz do ser algo eterno.
Pois, dentro cada célula
da fera que nos devora,
coexisto firme e forte,
indivisível e fraterno.
Vivendo o que somos juntos,
Faço de mim seu consorte,
dando graças à Senhora
que salvou-me pela morte.
Sedento de sangue e alma,
caçador dos solitários,
arrogantes sem calor,
desfruto de sua calma
que aos devorados aquece.
Carrego meus sentimentos,
alegria, raiva, dor...
que nenhum a besta esquece.
Anseio trazer comigo
os que procuram saída
dos mundos egocentrados,
imunes às garras da Vida,
Matriz de todo perigo,
Rainha dos destemidos,
Lareira dos devorados
que a tudo sentem consigo.