FANTASMAS DE LUZ/BAGHDAD/NÊSPERAS
FANTASMA DE LUZ I (2008)
Surgiu-me uma montanha no horizonte,
onde antes nada havia, de repente:
este meu pampa tornou-se diferente,
nessa coxilha gris como uma ponte
lançada de um abismo, num reponte
para outro abismo de fundo inconsequente:
essa colina cinza e indiferente
juntava abismos, tal como uma fonte
que suga a água ao invés de a produzir.
Essa é a vida, abismo após abismo,
flanqueando pontes, qual sonho febril
e que, ao invés de tais penhascos reduzir,
provoca a cada passo um cataclismo
e nos mata em seu capricho juvenil.
FANTASMA DE LUZ II (15/1/2011)
Quiçá nem vejas tu essa montanha:
ela se oculta, pérfida e ardilosa;
é transparente, mesmo, poderosa
para sugar-te a vida em plena manha.
De abusar de ti nunca se acanha,
ela te rouba da energia a mais preciosa
quando passas por ela, maliciosa,
nesse seu beijo pálido de aranha.
E nem sequer te interrompe a caminhada:
segues teus passos com algum cansaço,
sem perceber os dias que perdeste.
Que atravessas a montanha pela estrada;
ela te acolhe diariamente em seu abraço:
já a encontraste, sim, mas te esqueceste.
FANTASMA DE LUZ III
E é por isso que nós envelhecemos:
por força e ação dessa coxilha falsa,
que no meio da jornada, magra, se alça
e nos retira o quanto mais queremos.
Essa montanha de cristal, sabemos,
nuvem de geada, para a morte a balsa,
sobre teus passos baila impura valsa,
dança macabra, qual nos livros lemos.
Ela é composta por nuvens de sereno
que brotaram de pulmões já consumidos,
dos ancestrais que não mais respirarão;
E em noites de azeviche e de veneno,
soltaram em brandas nuvens, iludidos,
Todo o calor trazido ao coração!...
FANTASMA DE LUZ IV
E é branca assim essa montanha antiga:
sopros e bafos, humana cerração,
na luz difusa que nos brota do pulmão,
nesses momentos em que o frio mais te castiga.
Por transparente, não é menos inimiga:
ela se nutre das almas que lá vão
mas não as esvazia, em precaução,
tira um pouquinho só, nessa cantiga
que assovia ao pastorear o seu rebanho.
Só eu vejo essa montanha no horizonte,
nos dias claros de minha alucinação;
e é porque lembro de sonhos maus de antanho,
quando mais forte eu era e via avante
como reais, meus castelos de ilusão...
BAGHDAD I (2008)
Eu deveria trabalhar agora...
Porém não quero. É feriado muçulmano,
mas não me converti. É muito humano
esse massacre que fazem a toda hora.
Não posso acreditar, já li outrora
o Corão e lá não vi tal desengano:
que alguém despedaçasse, ano após ano,
o próprio corpo por levar outros embora.
Crer até posso que na luta pelo Islã
ganhar se venha o paraíso pela morte:
mas não assim, matando em multidão
os verdadeiros crentes. Como é vã
essa doença, pensar que Alá suporte
que um muçulmano mate seu irmão!
BAGHDAD II
No exemplo fero deste mundo fero
já escrevi, feroz, versos ferozes;
já descrevi, atroz, atos atrozes,
mero relato de um destino mero...
Meu corpo lustro e então o rosto encero,
minha voz oleosa entre as oleosas vozes,
rio açoreado ante açoreadas fozes,
meu verso falso de esplendor sincero.
Não sei o que fazer, dizer não sei,
apenas sei dizer o que não fiz,
apenas sei fazer o que não disse...
Querer apenas o que nunca dei
e dar apenas o que nunca quis,
neste soneto em que tudo me desdisse...
BAGHDAD III
As coisas se transformam, se renovam
e permanecem as mesmas, ano a ano.
A roupa é a mesma, só se troca o pano,
os corpos dos humanos não se inovam.
E mesmo aqueles que originais se louvam,
não fazem mais que trocar o desengano
invertendo suas cores, novo engano,
no velho plágio das canções que trovam.
E a roupa faz o monge e o homem faz
não o que pensa ou que a mensagem traz:
tudo o que pensa, mil vezes foi pensado
e já por outros alfaiates recortado...
E esta é a razão por que me vejo, aflito,
a desdizer todo o dito por não dito...
BAGHDAD IV
Só acredito em arte pela arte,
do mesmo modo, em poesia por poesia
e música por música. Sem valia
é todo o verso engajado em outra parte,
em que poesia é moldura e mero encarte.
A muitas coisas vãs serve esta via:
não deve o verso servir ideologia,
nem deve o coração sofrer enfarte.
É claro que se aborda qualquer tema
que desperte a atenção e nos inspire,
mas não cabe ao poema ser carruagem,
nem enquadrar-se da política no esquema.
Que em torno ao verso então o mundo gire
por ideológica que seja esta mensagem...
NÊSPERAS I
(2008)
querer ainda quero
embora a realidade
não satisfaça em nada.
mas não desespero
que talvez a verdade
por mais costumada
em quanto pareça
não passe de ilusão
que esconde da razão
o mal que padeça
talvez mesmo esqueça
cravado ao coração
o fruto temporão
que de murchar não cessa
NÊSPERAS II
(2011)
sonhar ainda posso
não existe tal coisa
que é ausência de sonho
sonhando remoço
não existe tal lousa
de tom tão tristonho
que recuse algum giz
e mesmo cansado
do pouco que fiz
eu sonho com a sorte
e até mesmo se diz
que o desesperado
de tudo o que quis
sonhar pode com a morte
NÊSPERAS III
não é isso que sonho
a morte me ronda
a morte me sonda
em semblante tristonho
porém não me exponho
a tal anaconda
só sei que aqui estou
e a morte não chega
e enquanto não pega
marchando ainda vou
pois quando chegar
não estou mais aqui
que a morte não vi
e nem vou encontrar
NÊSPERAS IV
plantei os meus frutos
não espero porém
que seja esse alguém
que tais lucros brutos
seu sumo a luzir
poderá usufruir
se brotam idéias
da pira da mente
nem por isso sou crente
em tais epopéias
porém as aléias
percorro frequente
do pomar indolente
regado por minhas veias