Boomerang

Boomerang

Era uma noite de chuva, uma dessas assustadoras noites grávidas, uma noite permeada de raios e trovões.

Gatos miavam nos telhados; ecos sinônimos de lamentos de precoces viúvas, prenúncios de irreversível solidão.

O sono, este meu parceiro arredio e covarde, manteve-se a distância prudente, os minutos a gotejar na escuridão.

Desertei de minha companhia. Vituperei contra este Sahara a preencher minha cama vazia, fantasma a denunciar nossas tórridas noites, o nosso modo de amar sem senões.

Por entre as cortinas baixadas perscrutei minhas retinas molhadas, meu insensato lembrar de como era o viver de nós dois:

Vi teu vulto a mover-se no Nada, tua voz a encher de esperança o meu quarto gelado; teu perfume, outra vez, a incendiar minhas narinas.

Debalde fugir das lembranças: de teu beijo ainda queimando em meus lábios, de teu calor que em outros corpos não encontro, de teu olhar que minha vida ilumina.

Incontáveis vezes arranquei-te de mim, a jurar nunca mais te querer; outras tantas, rebelde, voltaste, boomerang a misturar o que É com o quem Foi.

Outros dias virão, certamente; outras noites de insônia eu terei; esta chuva tuas marcas de mim não apagam - e teu nome, às estrelas, em segredo eu direi.

Sinatra cantando, só para mim, numa antiga canção (coisinha estúpida de se cogitar). Amo-te e te odeio igualmente; tuas carícias são como cinzas que não querem esfriar.

A dança do acasalamento,(e outras momices só nossas) tuas ancas a bailar na penumbra, teu insistente chamado, sem palavras, refletido no clarão do luar,

São pilhagens que trago comigo, troféus desta nossa luta constante; já que exorcizar-te de mim não consigo - em teu lembrar eu presente sempre estarei.

Cada momento de nossas vidas, cada pessoa que compartilha de nosso viver deixa uma marca característica, uma forma única de se fazer presente, de mostrar o quanto aquele momento, aquela pessoa, foi importante e especial para nós. Quase sempre esse relembrar vem de surpresa, nos espreitar quando o sono insiste em não querer chegar, ou pior ainda, quando estamos sós e fragilizados emocionalmente. Aí então o nosso relembrar ganha cores ainda mais dramáticas, aquecido que é pelas chamas quentes da solidão.

São José dos Campos, tarde/noite de final de Maio de 2010.

João Bosco

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 07/07/2010
Reeditado em 28/01/2020
Código do texto: T2364149
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.