Agonia
Agonia
Maldito sono, sempre a fugir de mim, deixando-me a cabeça coçando, medos pânicos a embalsamar, os grisalhos fios de barba um por um a cofiar.
Ameaçam-me velhos questionamentos exumados de suas tumbas, autópsias outras a se amontoar, resmungos amargos presos entredentes.
Palavras! Palavras, palavras e mais palavras; lindas palavras como jóias raras incrustadas num diadema, sofismas insólitos ofertados a uma rainha demente.
Não me satisfaz a rima hiperbólica, o verso perfeito que possa vir a criar; esbato-me inutilmente contra muros desarrazoados, a esgrimir com esta diabólica vontade de me matar.
A música que ouço, enquanto escrevo, me fala de amores, alguns elevados as alturas, outros empurrados ao fundo do poço; amores histriônicos, reais - cantados em uma madrugada banal.
Mais uma vez confesso-me saturado de palavras: o Vazio que me circunda elas não irão preencher. Indiferente, o teto me devolve o olhar – à luz do luar de Março, Nero põe fogo em Roma.
Não há bálsamo suficiente para minhas dores. Gastei a minha cota de cicuta em esquecidos terrores, pesadelos a me impedir de sonhar, irremediavelmente estou em estado de coma.
Cães ladram incessantemente em vielas escuras; o guarda-noturno trila seu apito, a dar-nos a confortante certeza de que estamos salvos desta sórdida loucura, de que nada aqui é real.
O sapo chutado, displicentemente, na rua, dá psicodélicos saltos no ar. A voz de um menino destaca-se como uma flauta num coro de energúmenas tubas; o bêbado engrola ininteligível canção.
Tétricas aranhas tecem suas teias, monótonos mantras osmoticamente a se infiltrar nas veias, velhas concepções, como barcos de velas enfunadas, renovam insidiosos contágios.
Não há porque se espantar: são imagens cotidianas, personagens de uma peça insana que se arrasta sem fim, manchas grudadas na pele, bilhetes a conter maus presságios.
O gozo solitário amordaça a tensão; sagrado Onam redivivo a entoar cânticos que camuflam gemidos. A madrugada avança insensível, prostituta cibernética a desfilar de roupão.
A túrgida carne ergue-se como um ícone, palpitante Esfinge a se decifrar. A mordida do inseto atrapalha a minha abstração; já não sei o que é errado ou o que é certo – um tapa homicida é dado em reflexo.
A amnésia é um perigo constante, escondendo de nós momentos que queremos eternizar; esquálida agiota que em línguas já mortas, ignotas, faz uma anamnese precipitada.
Imagens, palavras, momentos, pessoas, todos a se perder na neblina da mente, a implorar por resgate, aquartelados em magotes na insondável fronteira do Nada.
Contenho a torrente de lágrimas, acorrento meus assustados fantasmas na camisa de força de um desejo frenético – rota segura prá fugir da agonia representada por este dilema repetitivo e complexo.
O garanhão galopa celeremente nos campos: há cheiro de fêmea no cio impregnando o ar, cheiro de vida afastando o odor nauseante do formol.
Ariadne, virgem cretense, é portadora do fio que conduz a saída, senhora dos labirintos a oscilar entre o Sonho e a Ilusão, condutora da dourada carruagem solar.
A água que bebo não minimiza a secura que sinto. Sou apenas humano, demasiadamente humano, permeado de medos e dúvidas, vilões que não posso enfrentar.
No entanto, há esperança na porta da frente: meus olhos cansados anunciam o retorno do sono. A equação não se resolveu - não consigo desatar da garganta este nó.
Há determinados momentos em que não sinto a menor disposição para escrever ou qualquer outra atividade literária. De forma estranha, sinto como se as palavras me encaminhassem, malgrado a minha recusa, para diante de um pelotão de fuzilamento, aonde executam a sentença - atirando-me violentamente em face o que eu não queria verbalizar.
Cidade dos Sonhos, madrugada de Sábado, final de Março de 2010
João Bosco