Noite sem fim
Noite sem fim
Entre meus dedos deixo escorrer o tesouro de teus cabelos, régia coroa a te enfeitar, a me perder na vastidão de nossas incongruências.
O marulhar do vai-e-vem das ondas traz o mau augúrio de tua perene inconsistência, postura fluida como um vôo de garça no céu.
Versos lúgubres de Baudelaire anestesiam a minha noite sem sono; estranhos acordes de Lenine em minha cabeça, apoteóticas clarinetas em lua de mel.
Teus grandes olhos vasculham minh’alma - buscas minha tempestade apaziguar. A noite ainda anda a meio, furtiva como cortina a encobrir evidências.
Descubro em meu palato um resquício de estranho sabor: é o gosto sobrevivente de teu ultimo beijo, prisioneiro perpétuo desta desvairada paixão que me mata.
Estranha constatação faço a contragosto: não há amores tórridos sem sobressaltos. Da mesma taça em que se servem medos mórbidos, sonhos dourados põem-se a jorrar.
Oscilamos, em nosso amor prenhe de descompasso, entre jogos de sombra e luz. Aqui, há mil anos-luz de distância, teu rosto me inunda na tela, promessa ainda a resgatar.
Não tenho sequer o consolo das drogas, nenhuma delas substituiria as viagens que juntos fazemos; nada, e nem ninguém, obturaria o vácuo colossal de tua falta.
Tambores tribais, tantalizante mixing de sons, sinalizam o caminho a seguir, o precipício a se ultrapassar, este complicado labirinto romper.
Oh Deuses da noite, apiedem-se de minha insolência! A solidão, parceira inseparável de minha tumultuada existência, faz o meu raciocinar abstruso, difíceis meandros de decifrar.
Abdiquei dos amores pacíficos, desses que não matam de susto; em troca, deixei-me impregnar de teu vício, de tua forma de amar tão confusa, dependente químico de teu inconfundível beijar.
O sono está demorando a chegar, cúmplice desaforado de minha aflição; a música não mais cumpre sua missão de me acalmar – resta-me apenas esperar o nascer do Sol (e torcer prá que junto com ele me venha VOCÊ)...
A garça tem para mim um simbolismo que ainda não mensuro direito. Só sei que fico encantado quando a vejo, em sua brancura desajeitada, desfilar a beira de um curso d’agua. A garça, para mim, tem a graça de uma pintura de Klimt, de uma escultura de Brunelleschi, de um livro de Flaubert. Enfim: tem o andar da bela garça, também, a estranha graça de uma mórbida poesia de Baudelaire.
Cidade dos Sonhos, madrugada de uma insone Quinta-Feira, final de Março de 2010.
João Bosco