E é só
I
O meu marido me deixou
Estou reaprendendo a trabalhar
Hoje é sexta-feira e é noite
A internet vulgarizou a minha vida
Estou igual a seis bilhões de vidas
(Será que é sexta-feira em todo lugar?)
Hoje é noite de uma sexta-feira
E estou triste
Qual é o fim de uma vida?
Quando sabemos que não há mais nada?
Por que perdemos a esperança?
Hoje é uma sexta-feira
E só eu estou triste.
São 5.999.999.999 rostos felizes e despertos
Parece que os encontrei a todos nas ruas
Todos estão felizes
E só eu entristeci
Daqui a uma hora serão dez horas em outros lugares
E ninguém sorrirá
Mas estarão todos felizes por dentro
É agora em diferentes lugares
Em intervalos de uma em uma hora
E só eu não participo de tantas horas
Estou só
E ninguém além é triste.
Ele também deve estar feliz em algum lugar
Estou reaprendendo a trabalhar
Mas isso é de dia
Durante o dia
Minhas noites são vazias
Volto pra casa, tiro meus sapatos, as meias
É frio aqui
Tiro as calças, fico com a blusa
E estou só
Completamente só
Mais só do que devia
É quase meia noite
E ninguém mais é triste
Só eu envelheci.
Vou para a cama
Pego os restos de minha última quimera
Quero entrar com bagagem e tudo no mundo dos sonhos
Nesse mundo espectral onde encontro outros tristes
Tão tristes quanto eu
Estou só
E só eu sou infeliz no mundo
E tem gente acordando em outros lugares do mundo
Estou reaprendendo a ficar sozinha.
II
Nos sonhos eu me encontro
Encontro outros “eus” que me violam
Incontidos.
Arrasto meu corpo e procuro um outro
Que me conheça.
Assim, eu me exploro, entro em mim
Sou outro a me procurar
A entrar em mim, secretamente
A meter dedos e língua
A me beber e a me chupar
E a chupar seus dedos
Meus dedos.
Invado-me
Heroína de mim a me salvar
A me visitar em sonhos
A deixar sua saliva (que é minha)
Escorrer para dentro de mim.
Afasto minhas pernas e recebo
Essa boca que eu mesma inventei
Essa língua que eu sei guiar
Para onde eu preciso
Úmida de prazer.
Acordo molhada de meu gozo
E de minha saliva imaginária
Que escorre de dentro de mim
Molhada de sexo
Misturada.
O pouco de mim que resta me resta
Depois do sonho.