cortando pulsos

vou dizer palavras

como se corta os pulsos

cerimoniosamente

pretende-se morrer

se derramando pelo mundo

sangrando e manchando tudo

indesculpavelmente

vou lhe dizer palavras

como quem lê um testamento

mórbido

em voz alta

com pausas instigantes,

com olhares gigantes

a não ver o mundo minúsculo

que há exatamente

entre uma palavra e outra.

vou lhe dizer palavras

balbuciando significados lógicos

e mágicos,

arrulhando laivos sentidos

ou apenas fingindo sentir alguma

coisa

as coisas falam secretamente

pela decoração da sala,

o desalinho,

a rejeição,

o grande esforço de querer ser

agradável,

útil

enfim, aceita...

amada e aceita

ilusão e oclusão.

o medo que jaz

nas prateleiras arrumadas,

recheadas de ácaros vivos

diante da indiferença morta

a necropsia das paredes

ainda revela tijolos flácidos

assentados em lamúrias do tempo,

um em cima do outro

a mostrar com exatidão

a desconstrução da alma.

a vitória de ter conseguido

num silêncio

sintetizar um ideal...

ser excentricamente honesto

e, ao mesmo tempo

ser vil por detrás de toda

certeza cega

que arranca de nós.

a humanidade dos erros.

essa lâmina a passear pelo corpo

não cortará minha agonia

não dividirá nada em mim,

pois tudo é sólido,

é farto e infinito

e, a morte será desculpa

para risos,

para queixas,

para reticências absurdas

dos passantes.

morrer

cortar os laços e mergulhar

na infinitude sem volta,

na escuridão do ponto cego,

na escara do mendigo.

morrer será

tornar definitivamente finito

será uma vírgula numa intensa agonia

será entrar e não sair

apagar a luz e acender o gás

necrosar células sucessivamente

vedando delicadamente as janelas,

as portas,

as travas do coração bêbado

que tropeça na estrada emocionalmente

torpe.

morrer

cortando os pulsos

e manchando poemas de sangue

que depois de secos

não dirão nada de lirismo

não dirão nada de poesia,

de riso ou paixão...

servirão de lixo...

cuja reciclagem

pode estar no papel de

hoje.

Papel branco, alvo

e impunemente limpo.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 14/10/2009
Código do texto: T1866721
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