Solidão
Dedicado a Ivanira Dadalt e Raul Occhini
A fonte lá fora esparrama pela noite
a sua música noturna.
Eu cá escrevo e atento a cidade,
suas luzes, seu barulho.
Cachorros latem e pessoas falam ao longe.
Dentro deste apartamento apenas observo
e sinto o pulsar que emerge
além daquela sacada.
O avião em pleno vôo.
As buzinas dos carros.
Meus olhos marejados
e a falta de sono que me deixa impertinente.
E enquanto tudo isso acontece
perco-me em pensamentos
que acabam me levando para onde
nem ao menos sei se quero ir.
Um carro passa.
Uma pessoa dorme e ronca.
A televisão desligada
e a casa se preparando para descansar.
Só existe um poeta acordado
ouvindo a madrugada,
deixando-se levar feito água corrente
aos rios, mares e montanhas,
deixando-se evaporar e virar nuvens de algodão,
chover, chover e banhar as ruas
desta minha cidade que não pára,
desta minha cidade que me acolhe,
desta minha cidade que me resguarda
e que me salva de todos os perigos
os quais eu teria de enfrentar.
A fonte ainda canta lá fora
e os beija-flores dormem em seus ninhos.
Onde se localizam eles, eu não sei.
Sei que Raul os abastece com comida
e fica à espreita, esperando ansioso.
E eu rio disto tudo
porque entendo o quão simples é esta vida
e o quanto todos nós a complicamos.
Eu não quero a notícia,
nem quero ser a história.
Quero descansar no leito de um rio
enquanto as águas das cachoeiras
se precipitam levantando espuma.
Quero ver o alçar vôo de um avião
e observá-lo cruzar pelo céu azul de minha cidade.
Quero ver Durval se alimentando na sacada da Ivanira
e depois escapulir numa aventura aérea.
Quero rir, rir muito de tudo o que se passa à minha volta
e me vestir de palhaço para alegrar você,
contar piadas singelas
e recordar a minha infância
sentindo na boca um gosto de picolé minissaia:
meio abacaxi, meio groselha.
Quero tudo isso e ainda acho pouco.
E se puder pedir mais
gostaria de subir em uma árvore e lá ficar horas a fio,
fingindo-me de galho, de fruta, sei lá,
apenas deixando-me levar pela ocasião.
Amoras roxinhas ainda quero provar
e uvas colhidas na hora, escondido do produtor,
porque fruta roubada é mais gostosa!
E a vida vivida assim é que vale a pena.
Quero andar muito pela serra
e se ainda tiver coragem mergulhar fundo
em algum lago escondido,
visitar o reino encantado,
viver as Reinações de Narizinho.
Quero voltar a ser criança apenas um dia
e rever todo mundo que fez parte de minha vida,
os amigos e os inimigos.
Quero espantar o bicho-papão que ainda me amedronta
e enfrentar tudo de que sempre tive medo.
Quero beijar você, agora que sei como funciona isso
e voltar a rir de tudo ao meu redor.
Ah, como eu queria...
Mas o que me permito agora
é ouvir a fonte cantando sua melodia
hipnotizando-me tal qual um encantador de serpentes,
levando-me a lugares que já habitei,
como um flautista de Hamellin muito habilidoso.
E ela continua povoando minha fantasia...
E eu fico aqui, sozinho a pensar...
Pensar e relembrar...
O passado pode não voltar jamais,
mas tudo, tudo o que eu já vivi
foi o melhor presente que a vida me deu.
Poesia publicada no livro Sangue: literatura e outras loucuras, de Márcio Martelli, Editora In House (2008).