Horas vazias

No horizonte, oculta-se o sol

Chega a noite, sem promessas

Eleva-se a lua, minguante

Que fim de tarde, tão caótico

Pessoas no trânsito, apressadas

Enfrento-o também, apreensivo

Que fazer agora, não sei

Neste cenário de raras opções

Atinge-me a solidão, amarga

Onde devo encará-la, então

Numa casa noturna qualquer

Ou em meu vazio apartamento

Sim, meu destino é o apartamento

Não quero TV, nem mesmo CD

Não quero viver, nem ouso morrer

Na calçada, lá fora, ouço passos

Veículos passam em ágil disparada

Deslocam-se pra cá e pra acolá

Dou conta de estar só, meio perdido

Não, aqui não há mais ninguém

Nem mesmo chamam ao telefone

Onde estarão todos: filhos, irmãos,

Onde andarão as mulheres, os amigos

Portas e janelas parecem contemplar-me

Cai uma chuvinha miúda, sonora

Os pingos de chuva lá fora, que tédio

Cá dentro persiste o grande vazio

Busco o telefone e logo rejeito-o

Lá fora já predomina o silêncio

Amigo, traiçoeiro, inerte, desolador

A chuva cessou, não ouço mais os passos

Nem mesmo os veículos passam mais

Vem chegando a madrugada, mansamente

Sonho acordado, enquanto não me vem o sono

Viajo ao passado: saudoso, ingênuo, romântico

Recordo amigos, festinhas, clubes, escolas

Amigos irmãos, irmãos amigos, esperançosos

Domingos ensolarados, parentes reunidos, alegres

Avós presentes, quase jovens, muitas histórias

Pomares frutíferos, repletos, disponíveis

Matinês barulhentas, crianças tagarelas

Ternas garotas, olhos felizes, sonhos coloridos

Brincadeiras juvenis, doces namoradinhas

O mingau vespertino da mamãe, carinhosa

O temor do meu pai, severo, ausente

Tios irmãos, cúmplices, companheiros

As professoras de mini-saias, sedutoras

Vizinhas banhando-se, meio desnudas, distraídas

Calçadas de hematita, pés-de-moleque, azuladas

O bougainville florido, colorido, sombrio

Semana Santa teatral, chuvosa, tristonha

Coroação de Maria, pirulitos, cartuchos

Natal farto, esperado, alegre, musical

Minha mãe jovem, bordando, ao acordeão, lírica

Meu pai trabalhador, promessas, esperanças

O campinho de Lado, futebol o dia todo

O Trasáu, que nunca ganhou um jogo sequer

A primeira televisão, Rin-tin-tin, Lavourinha

A primeira namoradinha, inocentes beijinhos

O primeiro salário, dinheiro escasso, suficiente

Agora me chega o sono, meu corpo se entrega

Nada mais consigo fazer, é a vez do descanso

Dou adeus às recordações, converso com Deus

Meu leito está bem aquecido, bem acolhedor

As luzes de minha visão se apagam, apago-me

Harock
Enviado por Harock em 01/02/2009
Reeditado em 28/05/2013
Código do texto: T1415769
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