Desabrigado

Hoje me encontro em estado de desabrigo

Não me falta chão

Tem horas que tudo que sobra

é o chão para caminhar,

As pedras para contemplar

As agruras dolorosas para se lastimar

É tudo sobre o chão

Esticado e ao comprido.

Hoje estou desabrigado de mim mesmo

Ao relento, jogado num canto qualquer,

Num cômodo qualquer

Quem perde um amigo e, sobrevive

Perde qualquer e toda coisa

Perde a lógica,

a sanidade

a realidade

Só lhe sobra o chão

A alma está jogada aos pés

Chutada aos pontapés

Repleta de hematomas

E de apnéia

Vivemos horas sem saber

A exata hora de morrer

E, quando finalmente morremos

As horas fenecem com saudades

A colorir o cair melancólico da tarde.

A nostalgia dos desabrigados

Revela-se por andar a esmo

Em plenos desertos sem fim.

Em ler placas inúteis.

Em procurar calçadas inverossímeis

Em rajar o horizonte com

Olhares lilases de dor e compaixão

Mas tudo é chão e é finito

E logo abaixo do céu tão azul e infindo

Entre o finito e o infinito

Está a criatura humana

A se nutrir de paradoxos

E de doenças prodigiosas

A demonstrar nossa fragilidade

fundamental

Somos todos mortais,

Somos todos finitos

Vetores contidos em dna e história

Vetores perdidos nas emoções e ilusões

De seu próprio tempo

Estou desabrigado

Ao relento

A captar a garoa da chuva

Com saudades do sol

A chorar pelas gotas da chuva

discretamente

Sem deixar os outros perceber

Que estou poente

Que estou envelhecendo

E vivendo minha finitude

Com lucidez e paixão.

Fecho a porta do quarto

Passo trinco

Respiro aliviada

Por estar a sós

E contrita

Mas há um horizonte lá fora,

Manchado de crayon

No finito do quadro.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 02/12/2008
Código do texto: T1315249
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