MASTIGÁVEL VIDA  DIFUSA
 
 
Minha mãe,
Sigo e beatifico teus ensinamentos.
Você me disse um dia que a vida seria dura.
Essa de pedinte de beira de rua...
Tua solidão sempre fora trágica
Como lavadeira real
ou como uma “Real” prostituta!
 
Sei que teu recomeço
foi um estranho tropeço,
tragando os versos do ódio
e bebendo do sangue da luta.
 
Como dona-de-casa ou senhora de uma cidade,
namoradeira noturna,
 mas, cuidada na meia-idade,
 sempre enxuta.
Guardara sempre dentro do teu casaco
teu prestígio e tua conduta.
 
Sou tua filha pródiga,
esse estranho ser que reconheces como teu...
Não reclamo
Não inflamo
sou tua sombra
sou teu contrário
teu ante-projeto,
e substituta!
 
Se tua filha chora,
você, mãe, não se apavora.
Se tua filha se espanta,
então você grita e a espanca.
 
Mas, não seremos comprometidos na lida de pedinte...
Me põe no farol pra
angariar mais fundos
e, no dia seguinte,
talvez chore mais do que eu,
pela pergunta, pelo medo,
meu e teu!
Da lida, da vida,
Dalila, Sansão, Herodes, Prometeu...
Seu próprio ratstro se desfaz
diante de nossa incerteza...
  
Tua filha já estava formada...
Eu já virara escritora
cantora, modista ou reversa.
Sonhara trabalhar num "trampo" decente...
Mas você brincava com fogo
e virava a página da nossa conversa.
___ah! ela já sabe falar...
Ela grita e xinga,
ela dança e ginga,
e se desconcerta.
E dizia mais, sem emoção:
_ vai e trepa, enxerta, e traz o dinheiro do leite e do pão!
 
 Não mãe.
Neste quesito, você não entendera nada. Nadica de nada...
Mas, me ensinava tudo,
o verbo e a vertigem
o verso e sua origem,
e na confluência do tempo,
você passeava em seus assombros
e remontava, sob as tempestades,
entre os interstícios de cada estiagem,
seus mais dispersos fragmentos.
 
Não mãe.
Sua filha não queria morrer de tédio.
                       Eu sabia que não haveria mais nenhum remédio,
Era percorrer pelo corredor da morte
ou morrer de viver hipóteses
imprecisas e vazias...
Incontroláveis demolições
dentro de nós mesmas...
 
Eu rezava, mãe.
rezava e pedia  a Deus que nos ajudasse.
 
Mas sempre levava na cara um bofete,
Era menina, era moleque,
língua azulada, estrepolia,
não sabia por que apanhava,
mas você sempre sabia porque batia.
 
E era um "Deus-nos-acuda!
Você, uma loba
Saciando teu cio,
e eu, escondida em sua malvadez,
modelo inventada
na dança e no frio,
admirada e comprada, feito uma rez...
 
 
A cada sessão de "carícias",
dilacerava mais e mais o mundo daquela criança...
Uma menina seviciada,
que cheirava,
sonhava e conhecia, solitária,
todos os segredos dos homens inúteis.
 
E você dizia:
__ Não reclame!
 
__Nosso fim está perto...
Está escrito aqui, no farol da esquina,
está gravado aqui no meio do barro,
uma idéia obsecada de morrer na frente
de qualquer carro...
Ou atropelada por um tsunami
e jogada na lama.
 
Você quer morrer na cama?
_ Eu vou te matar!
Era o que eu prometia, instantaneamente!
 
Não quero ser um estrume demente,
uma adolescente,
filha de ninguém
largada na estrada
 descascada semente...
 
Mas você, mãe,
Seguia seu caminho, cega e pirada
puta e chupada
derramando meu sangue do menina.
 
Enquanto gerações passavam dentro de seus carros,
 ou paravam no farol,
atônitos, compondo loucuras
 meio que em estado choque,
paralisados, em delírios
olhando a esmo
olhos esbugalhados,
viciados.
 
Não há mais cola para cheirar... por hoje basta!
 
Não mãe!
Você não escreveu seu nome
na mesma história. Deixou-o à sorte, com seqüelas,
entre as avenidas e passarelas
e à procura da morte.
Novas mulheres nasceram,
No futuro,
e novas direções, tomaram...
 
E você, jogou-se de um viaduto qualquer.
 
Voou sem limites pelo concreto armado,
e deixou sua filha acorrentada,
desamparada,
mal amada.
 
E eu,
que a aguardei durante séculos,
ainda te amo...
 
Mas sinto calafrios,
quando outros filhos perecem
ou quando os beija-flores desaparecem
das árvores que ainda crescem.
 
08/09/2001