Estranho Vôo
Tudo voava.
Sim. Tudo voava.
Como abelha buscando flor.
Tudo girava.
Girava?
Sim, tudo girava.
Pratos giravam querendo pessoas...
A máquina de lavar girava
tentando limpar sujeiras da roupa.
Lá para lá e voltava para cá.
Os meus olhos também.
Momentos únicos de excitação.
O lustre balançava.
E, algumas vezes, o seu balançar
era tanto, que as lâmpadas se
desligavam, e vários pedacinhos de cristal
caiam nos meus pés, no meu corpo,
nas minhas mãos e olhos.
Mas não doía, quem disse que doía?
Pedaços de cristal.
Quem disse que caía? Caía?
As pontes e os viadutos eram
todos geométricos, e aquelas formas
brilhantes, me atraiam cada vez mais.
Com o contraste do brilho do sol,
elas se tornavam azuis, verdes,
brancas e metacores.
Quanto mais depressa o carro andasse,
mas excitada ficava.
Era bom. Gostava muito
de andar de carro.
A velocidade me atraía.
Conseguia distinguir a cor da terra,
as cores das campinas verdejantes,
o mato seco e mato molhado.
Conseguia enxergar cobras, lagartos,
bichos de todos os tamanhos.
O tempo passou bastante,
mas até hoje, gosto da
velocidade do carro.
Na verdade, gosto mais.
O chão mostrado é chão pisado.
O carro pisava, ou melhor,
passava no asfalto quente,
tentando aquecer e mudar minha conduta.
Deveria eu me aprumar?
Deveria eu atender os
convites que me dirigiam
constantemente?
Seria eu uma trapaceira, um alguém que
gostava de correr de vento em popa,
da brisa ao céu, do céu ao nada,
nas minhas imaginações.
Adorava balançar meu corpo. Era meu?
Sim, era meu... As pernas e cabeça que
balançavam eram minhas...
Balançava, balançava e balanço.
Adorava revirar os olhos.
Revirava e reviro,
mostrando a mim mesma
que sou do jeito que sou.
Bater palmas, enrolar as mãos,
empilhar cartas de baralho,
bater ponto nas minhas
bonecas de preferência.
Nada pode sair do lugar,
na minha alimentação,
nada pode mudar.
Eles não sabem ainda,
mas tenho uma memória
fascinante, leio três idiomas
e nunca fui à escola.
Entendo o que significa cada palavra?
Claro que entendo.
Eles não sabem, pois
não conseguem arredar
o pé para o meu mundo.
Não conseguem descobrir as minhas utilidades.
Eles dizem que sou super inteligente.
Sou mesmo. E dizem: olha que
interessante, ela adora futebol,
notícias, repórteres, sempre os mesmos
programas; adora catálogos, revistas,
jornais, pasquins, folheando-os
alternativamente.
Ela estará interessada em que?
Quando sou contrariada,
bato a minha cabeça sem
dó e nem piedade.
Mordo minhas mãos até
o sangue jorrar.
Adoro mercúrio. Mordo nas minhas mãos
e meus dedos cheios de calos já estão
à amostra do início do alejume.
Ah! Minhas características.
Impossível descrevê-las.
São milenares, são ousadas,
são diferentes.
Adoro a vida de minha maneira muito especial.
Quero viver de uma maneira muito especial.
Sou uma autista,
uma autista ou altista?
Altista ou altruísta?
Que nada! Sou autista.
A compulsoriedade será o meu futuro de melhora.
Sou autista e finjo que gosto.
Confesso aqui em pleno
julgamento de mim mesma.
Não gosto de ser autista.
Que fazer? Não suporto a
acústica do mundo.
Devo imediatamente
tapar os ouvidos.
Gostaria de ser artista.
Artista do meu mundo, das minhas
faltas de imaginação.
Artista que caí e levanta.
Artista que pega o ônibus e não se cansa.
Artista que escreve e trabalha.
Artista que perde o emprego e
depois batalha.
Artista que tem cartão de crédito da C&A
para comprar roupas bonitas,
de acordo com sua escolha
preferencial.
Ha, Ha, Ha, Ha,
Como é esquisito a linguagem contativa.
Pensam que a confundo com a conotativa.
É só olhar no dicionário e aprenderão.
Que coisa!!!!
Quero ser investidor, ter
títulos de capitalização,
seguro de dívida familiar,
proteção de perdas e roubos.
É terrível para mim ser um cabide.
Cabide abandonado e rotulado.
Ninguém, mas ninguém
quer me dependurar.
E dizem: ela não quer participar do
mundo dos vivos, do mundo de cá.
Mentira! Mentira! Mentira!
Quanta ignorância, pois se
acabo de dizer que não
quero ser cabide.
Egocêntrico Amor? Talvez.
O que quero é sair desta gaiola.
Silvânia Mendonça Almeida Margarida - 20.07.98