HIPOCRISIA
Tivesse eu o dom de escrever,
Muita coisa bela escreveria.
Refaria o mundo na escrita.
(Pensa o que escreve sem o ter).
Fosse eu poeta, a poesia,
Aconselharia que se lesse,
Pois nunca li uma obra lírica
(Talvez amanhã uma comece).
Em cada rua um canto poria,
Nas calçadas, folhas de sonetos
A cair das árvores em cifras,
Ritmando largas avenidas,
Pacatas, varridas pelos ventos.
As noites seriam como o dia,
Luminosas, sempre enluaradas,
De um céu de estrelas salpicadas
A sorrir nos olhares e almas,
Convidando àquelas serenatas
Dos que se amavam à moda antiga.
Ah, se essa rua fosse a linha
Que escrevo com sofreguidão,
Ela levaria com paixão,
Meus dançantes pés ao coração,
A me esperar, da amada minha,
De pé, suspirando no portão,
A me receber, ó Poesia.
Se eu pudesse redigir a vida,
Mudaria muito em sua trova.
Tudo que por dinheiro se troca
Perderia sua serventia.
Se eu fosse feito de grafia,
Me faria tão bom quanto devo.
Sem egoísmo ou severidade,
Teria os que amo cá por perto,
Me retribuindo lealdade.
Converteria maus pensamentos,
Das trevas à luz eu os traria
Em textos de santa melodia,
Em louvor, erguendo a alma dentro,
A Deus, Maestro das sinfonias.
Medito no que é, como seria,
Mas, cético, do alto logo desço,
De volta ao concreto pensamento,
Pois sei que há limites na escrita.
Não tem importância o que escrevo,
Que alguém o leia é que importa,
Porque, no final, mesmo o que conta
É que depois vire esquecimento.
Pois muito do bem que cá intento
Não sei se farei tornado obra…
Reconhece a mente e comemora
Se eu fizer ao menos dez porcento.
SAN, Tiago. Hipocrisia. In: — A VERDADE NÃO BASTA. 1ª ed. São Paulo: 2025.